Denilson Baniwa: 'Falta de uma produção textual indígena sobre arte me tira o sono' — Gama Revista
Denilson Noniwa

Denilson Baniwa: ‘Falta de uma produção textual indígena sobre arte me tira o sono’

Artista, curador e um dos principais intelectuais de origem indígena do país afirma: ‘Os indígenas começaram a falar por si’

Tereza Novaes 15 de Dezembro de 2022

O Rio Negro corta 1.700 km da Amazônia a partir da Colômbia até Manaus, ponto que encontra o Solimões para formar o Rio Amazonas. São as águas escuras do Negro que o artista visual Denilson Baniwa, de 38 anos, considera o seu local de origem e onde buscou abrigo no pior momento da pandemia de covid-19, em 2020. Havia tempo que ele não passava uma longa temporada na aldeia onde nasceu e onde vive sua família. A comunidade fica mais precisamente na região do Alto Rio Negro, próximo à fronteira colombiana, a um dia e meio de barco do município de Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas.

Radicado em Niterói, no Rio de Janeiro, desde 2015, Denilson ganhou o mundo cedo, aos 14 anos, quando foi a São Gabriel da Cachoeira, cidade na mesma região, para iniciar um curso livre de comunicação. Ele se apaixonou pelo tema, criou um jornal comunitário e se encantou com o rádio. Graças à experiência, foi convidado a integrar organizações indígenas, em Manaus, e viajou ao México para conhecer o movimento zapatista. Nessa temporada mexicana, conheceu a arte gráfica local e se apaixonou de novo – logo passaria a exercer o trabalho de designer gráfico que o encaminhou para a arte contemporânea.

O retorno ao Rio Negro em 2020 durou cerca de seis meses e um vídeo sobre essa jornada (que aborda ainda a angústia e o medo causado pela pandemia) faz parte da sua exposição individual, em cartaz na galeria Gentil Carioca, no centro do Rio. Denilson também é cocurador de “Nakoada”, mostra que ocupa o MAM-RJ, e também participa de “Um Século de Agora”, no Itaú Cultural, em São Paulo.

Intelectual afinado com as questões atuais, ele afirma que sua maior inquietação no momento é a falta de registros escritos de autoria indígena sobre a arte indígena, algo que ele pretende se dedicar no próximo ano. Em entrevista a Gama, ele fala desse e de outros planos futuros, reflete sobre o legado da Semana de 22 e o crescente interesse em torno de artistas de origem indígena. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Essa paixão pela arte gráfica também foi uma forma de estar aliado ao movimento indígena

  • G |Você localiza o rio Negro como seu local de origem e refuta laços acadêmicos e formação universitária. Qual a sua história e onde ela se ligou à arte?

    Denilson Baniwa |

    Depois da Constituição Federal, vários povos indígenas começaram a se organizar, seguindo um pouco o padrão de organizações sociais latino-americanas de esquerda. No Brasil todo essas organizações indígenas foram formadas e, no Rio Negro, onde eu nasci, não foi diferente. Lá foi fundada a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro e havia (e ainda há) vários projetos com universidades e com outras organizações internacionais.

    Em 1999, um projeto em parceria com a USP ofereceu vários cursos e minicursos, na cidade de São Gabriel da Cachoeira, voltados a jovens indígenas que estivessem querendo algum tipo de formação, eram áreas bem práticas. Na verdade, eu escolhi uma meio inútil para o Rio Negro, eu poderia ter escolhido, conserto de barco ou algo assim, mas escolhi comunicação e multimeios [risos]. Era aprender basicamente técnicas de jornalismo, boletins informativos impressos e programas de rádio. Fiquei muito apaixonado por comunicação, por radialismo, principalmente. Então, já fui trabalhar na organização e depois fui enviado para a organização nacional, que tem sede em Manaus, e passei por diversos setores, primeiro comunicação, claro, depois saúde e educação. Foi assim que eu saí da comunidade.

    No final dos anos 90, a gente estava em contato com o movimento da zapatista do México. Fui para lá, conheci, fiquei um tempo e me apaixonei pelo tipo de arte gráfica feita lá. Quando voltei, passei a trabalhar com isso. Se for contar hoje, talvez 90% de toda produção gráfica produzida no movimento indígena até 2007 é minha, fui eu quem fez, assim como os logotipos. Essa paixão pela arte gráfica também foi uma forma de estar aliado ao movimento indígena. Até que eu vim para o Rio, em 2015, e me chamaram para participar da exposição “Dja Guata Porã | Rio de Janeiro Indígena”, no Museu de Arte do Rio.

  • G |O que mudou a partir daí?

    DB |

    Foi a primeira vez que eu senti vontade de fazer uma coisa que não fosse para o movimento indígena, mas algo que eu conversasse com um público sobre o que eu achava interessante e que não fosse diretamente ligado à produção gráfica, algo que chamamos de arte contemporânea. Foi quando comecei a pensar, por exemplo, na participação de artistas indígenas no meio artístico, a frequentar vários lugares e instituições de arte e também quando passei a desenvolver melhor o meu trabalho, com dois grandes amigos meus dessa época, a Clarissa Diniz e o Pablo Lafuente, pessoas que me ajudaram muito a entender esse mundo da arte e como me posicionar nele.

Por muito tempo, não conseguíamos falar, ser dono da própria voz. Havia sempre intermédio de um antropólogo, sociólogo

  • G |Como você avalia este momento de maior interesse e valorização dos saberes e das culturas indígenas?

    DB |

    De uma certa maneira, sempre houve uma valorização, uma expectativa e uma apreciação de saberes e interesses indígenas. Mas, por muito tempo, a gente não conseguia falar, ser dono da própria voz. Havia sempre intermédio de um antropólogo, sociólogo ou alguém relacionado ao interesse indígena, mas que não era indígena.

    Nos últimos anos, principalmente com a inserção de pessoas indígenas nas universidades e em contextos mais amplos, mais políticos, essa presença se tornou mais notada porque essas pessoas começaram a falar também, os indígenas começaram a falar por si, a se posicionar no mundo, a entender os mecanismos políticos desse mundo. E, entendendo esses mecanismos, conseguiram trazer para fora conhecimento com mais embasamento e força.

    Isso está aliado também a uma mudança de pensamento da sociedade em relação à questão do meio ambiente, a questões sociais, além de uma mudança de postura do governo que aconteceu no primeiro mandato do Lula ajudaram muito a chegar neste estado em que estamos, no qual as pessoas têm muito interesse em conhecer e ouvir esses saberes indígenas.

    Não foi uma virada, não foi do dia para noite, foi uma construção, desde a Constituição Federal até agora. Claro que tem momentos muito marcados, como a ida de pessoas indígenas à universidade e a inserção de pautas indígenas no governo. Os debates ambientais e sobre mudanças climáticas fortaleceram ainda mais.

  • G |A exposição que você participa no Itaú Cultural reflete sobre o centenário da Semana de 22, você pode falar um pouco sobre “Pietá Pietã”, obra que está nessa mostra?

    DB |

    Todos os meus trabalhos são sempre uma espécie de pastiche entre o que é de fora e o que é de dentro do mundo indígena, referências pictográficas muito conhecidas para quem é desse universo metropolitano na tentativa de revertê-las e trazer um pensamento indígena. É como se eu quisesse pegar uma imagem que é superconhecida e trazer uma mensagem indígena. Essa obra no Itaú Cultural é justamente isso. São muitas camadas, mas uma é a própria sobrevivência diante de tudo o que já foi feito para extinção das populações indígenas.

    Pietá é uma figura clássica da arte ocidental, grandes mestres pintaram e esculpiram essa cena. Meu trabalho é também um “roubo” de uma obra famosa do Vicente Rego Monteiro, já que o trabalho é também uma “cópia”. Só que eu coloco “Pietá Pietã” para trazer esse luto brasileiro em relação às culturas indígenas, um desconhecimento quase que total dessas diferenças culturais.

    É interessante eu, enquanto indígena, observar todos os movimentos que acontecem nas cidades em relação às populações indígenas, perceber também que, muitas vezes, é superficial. As pessoas se preocupam, por exemplo, com os yanomamis morrendo, mas não sabem que existem outros povos passando por situações idênticas no Brasil.

  • G |E a relação com o modernismo?

    DB |

    Há sempre um recorte muito pontual, o que me leva a pensar também no recorte pequeno que os modernistas fizeram em relação à cultura indígena. Claro que havia uma falta ainda maior de conhecimento naquela época sobre a diversidade indígena no Brasil, e os modernistas querendo trazer essa brasilidade a partir de culturas à margem, acabaram recortando um pequeno pedaço. É um bolo inteiro, do qual partiram uma pequena fatia, dividiram entre eles [os modernistas] e passaram a comer essa fatia infinitamente, sem entender todo um contexto muito maior que o Tupi or Not Tupi.

    Há toda uma violência sistemática acontecendo desde sempre, que ultrapassa violência física. Essa violência que os acadêmicos chamam de epistemológico é a retirada de uma pequena parte de um conhecimento indígena, reelaborado a partir de uma ótica ocidental e, aí sim, aceito pela sociedade. Essa é a crítica desse trabalho, o que eu quero falar: o quanto a gente está perdendo da cultura indígena, o que a gente tem que conhecer e ampliar para as nossas perspectivas de mundo diferentes, porque estamos focados em uma coisa só, uma parte mínima de tudo isso.

Como baniwa, entendo a antropofagia como esse momento de contato, de transição e de transformação a partir do que se retira do outro

  • G |Achei interessante essa figura que você usou do bolo, de comer o bolo, porque me remeteu a antropofagia. Como baniwa, qual sua opinião sobre o Manifesto Antropofágico?

    DB |

    Existe na mitologia, na cosmologia indígena, todo um grande panteão de entidades e várias histórias incluem o devorar o outro para se ganhar poderes, ou mantê-los, ou ainda para se transformar. E justamente, muitas vezes, as pessoas procuram encontrar um índio original ou intocado, esquecendo que a sociedade brasileira obrigou esses índios a terem o máximo contato possível, inclusive criando leis para que eles deixassem de serem índios, se considerando apenas “brasileiros”. Mas esse contato muda muita coisa, inclusive nas mitologias, por exemplo, o aparecimento de armas de fogo nas histórias tradicionais.

    Como baniwa, entendo a antropofagia como esse momento de contato, de transição e de transformação a partir do que se retira do outro. O que se retira do outro vira alimento, acaba se juntando ao nosso próprio corpo e transformando a gente também. Então, se a gente comer muito a televisão, a televisão vai acabar fazendo parte do nosso corpo e nos mudando também. Comemos muita coisa dos brancos, o que vai acabar mudando o nosso corpo e nossa cabeça. É uma constante transformação pelo contato com o outro.

  • G |Você é o curador da exposição “Nakoada”, em cartaz no MAM-RJ, o que significa essa palavra?

    DB |

    Em baniwa, tem essa palavra koada, na é um pronome. Nakoada seria nossa vingança, nosso retorno, nossa retribuição, nossa revolta. O povo baniwa tem uma série de regras, “leis”, que todos aprendem desde pequeno e que devem seguir durante a vida inteira, dentre essas regras, têm, por exemplo, aprender o máximo sobre o outro e fazer tudo de maneira que agrade a comunidade. Nessas regras há um princípio que é o da nakoada, o retorno de uma ofensa.

    Um bom jeito de retribuição é entender quais as nossas forças diante do nosso oponente. Se a nakoada for pela arte, ela só vai ser eficiente se as pessoas que tiverem fazendo a nakoada pela arte entenderem profundamente os seus códigos e poderes. Nakoada é entender o processo, entender a linha histórica, para saber como fazer o retorno e como fazer o enfrentamento. Então, a exposição, a expografia, tem essa forma de serpente que engole todas as obras dos modernistas e mergulha pelo prédio, volta de novo pela parede e engole de novo outras obras modernistas. É uma forma de entender a história da arte brasileira pelo modernismo e como as pessoas que estão à margem podem se preparar para dar uma resposta à altura.

    No final das contas, a nakoada é uma espécie de manual de autodefesa ou de contra-ataque de maneira eficiente, de uma maneira que não seja uso de força desperdiçada. Para enfrentar o modernismo é preciso entender o que é o modernismo, não só o ataque gratuito, não só a crítica gratuita. Precisa entender quem são os personagens e que a cultura brasileira hoje não seria como é hoje se não fossem os modernistas. Não teríamos a proteção aos objetos, saberes e literatura indígenas se não fosse o Mário de Andrade, o começo desse colecionismo e, depois, a criação do Iphan [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional].

    Nakoada pela arte tem esse sentido: um entendimento de todos esses poderes e da história modernista para que um artista indígena não passe vergonha e, por exemplo, ataque gratuitamente Mário ou Oswald de Andrade, sem entender o impacto cultural, inclusive na preservação da cultura indígena. E, claro, entendendo tudo isso também possa atacar no ponto certo e fazer crítica.

  • G |Quais são suas inquietações atualmente?

    Denilson Beniwa |

    O que não me deixa dormir direito agora é a falta de uma produção textual indígena seja de crítica, seja sobre processos artísticos indígenas. É uma autocrítica também, estamos deixando passar esse momento sem registrar em texto. Estamos em muitas exposições, temos muito alcance da arte indígena contemporânea no Brasil, é um assunto que está se discutido muito, mas não temos textos a respeito disso. Isso é uma coisa que, no ano que vem, pretendo me dedicar e também convidar artistas indígenas a escrever sobre seus processos, sua prática sobre e seus pensamentos porque já faz quatro anos pelo menos que a gente está em ascensão e há pouquíssimo texto nosso sobre isso.

    Além disso, tenho pensado no meu trabalho, tenho um projeto na Pinacoteca que deve começar em janeiro e no qual quero pensar em uma forma de educação, tanto indígena quanto não indígena, me dedicando a pensar como usar a minha presença como uma forma de ensino, talvez a língua indígena para não-indígenas e isso trazer um espectro da quantidade de línguas indígenas no Brasil, ou ensinar para jovens indígenas processos não-indígenas importantes para nossa sobrevivência. Acho que eu estou tentando voltar a 2004/2005, quando eu acreditava que educação é um poder de presença.

Este conteúdo é parte da série “Ecos de Outros 22”, produzida em parceria com o Itaú Cultural, uma organização voltada para a pesquisa e a produção de conteúdo e para o mapeamento, o incentivo e a difusão de manifestações artístico-intelectuais.

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