Saúde mental dos mais jovens: de quem é a responsabilidade? — Gama Revista
Reportagem

Saúde mental dos mais jovens: de quem é a responsabilidade?

Escola, família e poder público têm deveres compartilhados para promover o suporte necessário aos jovens que sofrem com questões relacionadas à qualidade de vida cognitiva, comportamental ou emocional

Ana Elisa Faria 07 de Junho de 2024
Via Freepik

É um consenso: a saúde mental de crianças e adolescentes é uma responsabilidade de toda a sociedade, com cuidados que devem ser divididos entre o poder público, as escolas e as famílias. Os deveres compartilhados por essas três esferas — que devem ser cumpridos sem que a autonomia infantojuvenil seja desrespeitada — são essenciais para o suporte necessário às pessoas com até 19 anos de idade que sofrem com questões relacionadas à qualidade de vida cognitiva, comportamental ou emocional. E, mais, que necessitam de amparo e fomento para o não adoecimento. Afinal, não há saúde sem saúde mental.

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O tema da saúde mental na infância e na adolescência tem uma história complexa, envolta em tabus e preconceitos, e ainda mais marcada por abordagens inadequadas do que o histórico da doença mental em adultos.

Apenas de 50 anos para cá — e mais reforçadamente nas duas últimas décadas — houve uma significativa redução da discriminação associada à saúde mental, graças a esforços de várias frentes que trabalharam para tornar o assunto mais visível e próximo das experiências individuais, além do desenvolvimento de programas, governamentais e das Nações Unidas, dedicados aos mais jovens. A mídia, ao fazer reportagens e dar voz a profissionais e estudiosos, esteve e continua nessa frente desde então.

A Organização Mundial da Saúde também teve, no passado, e continua tendo, no presente, um papel fundamental na conscientização em torno da temática, com campanhas e divulgações de dados. Um deles revela que metade das questões que envolvem a saúde mental começa aos 14 anos, podendo acompanhar o indivíduo por bastante tempo.

“Por isso, esse é um período fundamental, não só para a gente poder intervir o mais cedo possível para diminuir o sofrimento e a sobrecarga do jovem e da família, mas porque algumas condições afetam a saúde mental da pessoa pelo restante da vida”, explica Rossano Cabral Lima, psiquiatra de crianças e adolescentes e professor do Instituto de Medicina Social da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Marcos Ribeiro, psiquiatra da infância e adolescência e coordenador do programa Dica (Desenvolvimento Integral de Crianças e Adolescentes), da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), destaca ainda um número importante. “Há estudos diversos, no Brasil e pelo mundo, que apontam que cerca de 14% de pessoas nessa faixa etária apresentam algum problema de saúde mental”, diz.

Entre eles, os mais prevalentes, no geral, sem distinção por gênero e idade, são quadros depressivos e de ansiedade, os transtornos disruptivos, o transtorno opositor desafiador e o TDAH, o transtorno do déficit de atenção com hiperatividade.

Esse cenário, segundo os especialistas consultados pela Gama, evidencia a necessidade de abordagens proativas, precoces, urgentes, multiprofissionais e intersetoriais para o cuidado e o tratamento dessa população, assim como um olhar para a prevenção e o bem-estar.

Consultora de empresas e coach, Fabiane Cauneto é mãe de Fabrício, 10, diagnosticado desde os cinco anos com TDL (transtorno do desenvolvimento da linguagem) — condição que afeta a capacidade de compreensão e/ou de expressão de forma adequada para a idade e que pode prejudicar a saúde mental da criança — e, mais recentemente, com TEA (transtorno do espectro autista). Ela conta que essa união, de fato, faz a força e a diferença.

Foi por meio da antiga escola do filho que o TDL foi descoberto e de onde partiu a indicação de especialistas no tema. Após a descoberta do diagnóstico e o início do tratamento, terapeutas (da psicologia e da fonoaudiologia), instituição escolar e família vivem em contato. Cauneto evidencia os benefícios dessa ligação em prol da saúde (mental e física) de Fabrício.

“Há uma conversa de como ele está na terapia, na escola, em casa, com amigos. Quando juntamos todas essas partes, sinto que o quebra-cabeça fica mais fácil. Porque eu vejo essa situação como um quebra-cabeça a ser montado. Não sabemos qual é o desenho que vai sair e eu preciso que cada um traga um pedacinho, uma peça, dentro do seu conhecimento, para juntar e saber qual é a melhor estratégia a seguir.”

As políticas e o papel do poder público

Para Rossano Cabral Lima, o poder público tem a tarefa de liderar esse processo, sobretudo desenvolvendo as políticas de serviços. Ele cita ações para que essas evoluções ocorram, como o avanço da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com foco na ampliação da quantidade de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) infantojuvenis pelo país — hoje, o Brasil tem apenas 292 instituições voltadas ao atendimento de crianças e adolescentes habilitadas pelo Ministério da Saúde. “Precisa ampliar esse acesso. Talvez acesso seja a palavra-chave aqui.”

O psiquiatra comenta também a Lei 14.819/24, sancionada em janeiro de 2024, que institui a Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares. “O que ela propõe é que, de fato, haja uma articulação entre a saúde mental, a atenção psicossocial, o sistema de assistência social e o Programa Saúde na Escola (PSE)”, lista. O PSE, por sua vez, é descrito como “uma estratégia de integração de saúde e educação para o desenvolvimento da cidadania e da qualificação das políticas públicas brasileiras”.

Professora de terapia ocupacional da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), Cláudia Braga salienta a importância da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas que, de acordo com ela, tem a responsabilidade de promover diretrizes, práticas e estratégias nos serviços de saúde para cuidar da saúde mental de crianças e adolescentes, mas que necessita de mais investimento.

“Acho fundamental colocar numa perspectiva histórica. Nos últimos seis anos, houve um desinvestimento financeiro nos serviços de saúde mental. E isso tem um impacto na qualidade dos serviços. Para a gente poder cuidar da saúde mental dos jovens, promovendo políticas públicas de qualidade, é preciso primeiro, sem sombra de dúvida, um maior investimento, inclusive financeiro, mas também de garantias para que os profissionais de saúde que trabalham nesses serviços possam exercitar o seu trabalho”, detalha.

É importante ter um profissional de referência que acolha o sofrimento e que cuide desse jovem longitudinalmente

Essas proteções trabalhistas, menciona Braga, passam, por exemplo, por estabilidade. “Quando falamos de saúde mental, estamos falando da importância de um profissional de referência que acolha o sofrimento da criança e do adolescente, que cuide desse jovem longitudinalmente.”

Braga assegura que a constante mudança de especialistas e as consequentes interrupções nos tratamentos e possíveis descontinuidades de atendimentos — no caso de profissionais que saem em busca de remunerações melhores — causam um impacto no cuidado das crianças e dos adolescentes que usam esses serviços específicos.

A escola e a promoção da saúde mental

Rossano Cabral Lima, da UERJ, sugere que os avanços na área precisam estar tanto no polo do tratamento quanto no polo da promoção da saúde, por meio de políticas de saúde e políticas sociais mais amplas, “além de algumas políticas intersetoriais, articulando saúde, educação, o campo dos direitos e a assistência social”.

“A promoção da saúde mental muitas vezes é feita com iniciativas que não são necessariamente do campo específico da saúde. Tem a ver com tudo aquilo que puder melhorar a sensação de bem-estar, como as condições sociais, a redução dos índices de violência, seja em casa, seja na comunidade, a sensação de pertencimento que, no caso da criança e do adolescente, está principalmente na comunidade escolar”, explica o psiquiatra.

Lima reforça que a escola tem uma atribuição relevante à medida que a instituição entende que, além de ensinar os devidos conteúdos, ela tem uma função fundamental no cultivo das relações. “É claro que o padrão de sociabilidade vai depender de cultura para cultura, de segmento social para segmento social, mas é essencial integrar os estudantes e estimular relações que possam ser consideradas positivas e saudáveis, discutindo temas como a violência e o bullying, que podem levar a situações de saúde mental complicadas.”

Ter serviços de saúde mental fortes, com investimento financeiro, profissionais comprometidos que criam relações de longo prazo com o público e com o território — todas as instituições do entorno, como a escola — leva a uma maior qualidade da relação das escolas com o serviço de saúde mental. “Essa troca e o zelo em todos os locais onde os jovens estão, e eles estão principalmente na escola, é crucial”, afirma Cláudia Braga.

A discussão sobre a promoção da saúde mental, no sentido de ofertar satisfação e conforto, e promover mais habilidades socioemocionais de crianças e adolescentes é hoje parte, também, do debate realizado nas comunidades escolares. “A gente precisa pensar qual é o lugar da escola. O lugar da escola, no meu ponto de vista, é o lugar da educação”, diz a professora.

Os especialistas alertam para que a escola não seja sobrecarregada porque ela não é a única responsável pelo tema e, além disso, para que os estudantes não sejam estigmatizados ou para que professores, coordenadores e gestores escolares não classifiquem qualquer experiência de sofrimento como uma questão de saúde mental.

No caso de Fabiane Cauneto, a antiga escola de Fabrício teve um papel primordial para o desenvolvimento do garoto, que, na época, pelas dificuldades com a fala, não tinha uma interação saudável com a turma. Hoje, ele estuda em outra instituição, na zona oeste de São Paulo, uma escola particular que, de acordo com Cauneto, abraça a causa e tem um olhar mais apurado a questões relacionais.

“O ambiente escolar é propício para eles se desenvolverem e viverem conflitos, entrarem em questões difíceis que têm a ver com o próprio desenvolvimento e com a percepção de como estão crescendo e de como funcionam sozinhos, em grupo, em sociedade, num lugar que é diferente de casa e da família”, pontua.

A importância da família

A família é um pilar substancial no cuidado da saúde mental dos mais jovens, mas ainda há certas dificuldades de pais e mães ou outros cuidadores responsáveis em tratar a doença mental como um assunto da saúde da criança ou do adolescente — atribuindo determinados problemas de comportamento ou emocionais a causas menos estigmatizadas, como questões neurológicas ou disciplinares.

O estigma, que perdurou por boa parte do século 20, quando a juventude com transtornos mentais frequentemente era enviada a reformatórios, educandários e abrigos, muitas vezes fora do campo da saúde, ajudou a difundir, também dentro de casa, a máxima discriminatória de que “lugar de louco é no hospício”.

Além da saúde, família e escola têm papéis críticos na promoção da saúde mental. A integração desses ambientes é vital para o bem-estar dos mais jovens

O doutor Rossano Cabral Lima observa que há uma resistência de pais e mães em buscar atendimento para os filhos em consultórios de psiquiatria. “Preferem levar o filho ao neurologista do que ao psiquiatra.” Ele finaliza: “A criança e o adolescente são seres intersetoriais; além da saúde, a família e a escola têm papéis críticos na promoção da saúde mental. A integração desses ambientes é vital para o bem-estar dos mais jovens.”

A professora Cláudia Braga frisa que os familiares são fundamentais para o cuidado da saúde mental, com o apoio dos serviços de saúde mental e outros serviços da área da saúde do território ao qual aquela criança ou aquele adolescente vive.

Marcos Ribeiro, coordenador do programa Desenvolvimento Integral de Crianças e Adolescentes da Unifesp, sublinha que a saúde mental dos cuidadores principais impacta diretamente nas crianças e nos adolescentes. “É essencial entender e fortalecer o ambiente familiar como parte do cuidado da saúde mental.”

Fabiane Cauneto vê o TDL e o TEA do filho como uma forma de desenvolvimento e aprendizado para a família — incluindo o marido e a filha caçula, de sete anos —, com grandes insights que surgem a partir do modo particular que o primogênito tem de ver o mundo.

“Quando a gente amplia o nosso olhar para o que está acontecendo, sem julgar, sem querer corrigir, sem querer enquadrar a criança, é uma linda oportunidade da gente crescer com as situações, que são desafiadoras. Tem sido bem legal para a família toda. Não é fácil, mas é legal.”

Complexa, multifacetada e interligada, a responsabilidade pela saúde mental infantojuvenil pede um delicado equilíbrio entre as partes competentes: as ações realizadas pelo poder público, a atuação das escolas e o suporte familiar. Ou seja, quando um problema é detectado, pais, mães e cuidadores — percebendo no lar ou alertados pela instituição escolar — devem procurar o serviço público médico adequado que, agindo no território da criança ou do adolescente, mantém contato com a família e com a escola, para trocas e acompanhamentos.

No entanto, como apresentado por Lima, Braga e Ribeiro, no cenário brasileiro, em que os recursos nem sempre estão disponíveis, é necessário que cada uma das esferas cumpra suas atribuições de maneira coordenada e eficaz, implementando estratégias integradas com foco no bem-estar dos mais jovens e na construção de um futuro em que a saúde mental seja acessível e efetiva para todos.

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Este conteúdo é parte de uma série especial sobre saúde mental de crianças e adolescentes, produzida com apoio da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, instituição que atua em iniciativas sociais dedicadas à melhoria da qualidade de vida na infância, ao conhecimento científico sobre a saúde infantil e à assistência médica infantojuvenil.

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