Um ano para repensar a Semana de 22 — Gama Revista
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Um ano para repensar a Semana de 22

Centenário de 1922 foi marcado por livros, exposições e muita revisão crítica

Gabriela Longman 16 de Dezembro de 2022

Por décadas estabeleceu-se que a Semana de 1922 era um acontecimento ímpar na história brasileira, espécie de pedra fundamental e fundadora do modernismo. Passados seus cem anos, exposições, livros e eventos desfilaram pelas principais instituições culturais e editoras para celebrar seu legado mas também para relativizar um tanto de sua aura cintilante.

Somada ao bicentenário da Independência, a efeméride recolocou a identidade brasileira no cerne do debate. Mais do que refazer ou recuperar o que a Semana propunha, boa parte das mostras e publicações dedicaram-se a pensar sobre seu elitismo e elencando os temas e os grupos sociais que o movimento deixava de fora. Lançaram-se ainda novos questionamentos sobre a proeminência de São Paulo, com uma atenção nova ao que acontecia artisticamente em outras cidades brasileiras durante os anos 1920 – no Recife, de Cícero Dias; ou na Belém, de Bruno de Menezes.

As ausências e silêncios falam mais alto nas reflexões do século 21 sobre a Semana e seus desdobramentos

“No contexto da reivindicação das minorias e da representatividade, as ausências e silêncios falam mais alto nas reflexões do século 21 sobre a Semana e seus desdobramentos”, escreve a professora e pesquisadora Gênese de Andrade na introdução do volume “Modernismos 1922-2022” (Companhia das Letras), reunião de 29 ensaios inéditos organizada por ela e uma das publicações mais contundentes na legião de lançamentos editoriais em torno do legado de 22. Entre os textos ali agrupados está uma pensata sobre arte indígena contemporânea, em especial a de Jaider Esbell, desenvolvida pela escritora e pesquisadora associada ao Brazil Lab da Universidade de Princeton Marília Librandi. “É instigante perceber que o tema não se esgota, ressurgem documentos esquecidos, imagens ausentes geram interrogações e interpretações canônicas são postas à prova”, complementa Gênese.

Celebração na literatura

Movimentando o mercado editorial, a efeméride do centenário trouxe às estantes análises, biografias e reedições de textos fundamentais dos participantes da Semana, de Mário de Andrade em especial. A correspondência do poeta com o amigo e intelectual Paulo Duarte (1899-1984) reunida sob o título “Mario de Andrade por Ele Mesmo” ganhou nova edição (Todavia) e uma densa e divertida “Seleta Erótica” andradiana foi organizada por Eliane Robert Moraes em oito partes (Ubu). Destaca-se ainda reedição caprichada (ed. José Olympio) para “Macunaíma”, com a capa que Thomaz Santa Rosa havia feito para edição de 1937.

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Celebrar o mito de Mario de Andrade ou desmontá-lo? Dentre as análises mais densas, vale destacar a leitura provocativa do professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luís Augusto Fischer, “A Ideologia Modernista: A Semana de 22 e sua consagração” (ed. Todavia):

“Quero mapear o modo como o Modernismo paulista — o Modernismo paulista de Mário de Andrade, em essência — virou o parâmetro geral e inescapável de validação da cultura brasileira em todo o século XX. […] Não é propor uma nova interpretação para o fenômeno, mas entender por que o dito Modernismo paulista foi convertido numa espécie de Gênese da boa literatura brasileira, ou um Big-bang da literatura válida”, sugere o autor percurso crítico que vale a leitura.

Em volumes menos cabeçudos, moda e gastronomia também entraram na dança: Carolina Casarin dissecou o “Guarda-Roupa Modernista” (Companhia das Letras), focado nas vestimentas de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade – ou Tarsiwald, como era chamado o casal frisson por Mario de Andrade – e Rudá Andrade, neto de Oswald, lançou “A Arte de Devorar o Mundo” (publicação independente) inspirado nas aventuras gastronômicas do avô. Ficou para 2023, entretanto, o lançamento da aguardada biografia de Heitor Villa-Lobos que está sendo produzida pela jornalista e pesquisadora Camila Fresca. O personagem é tão grande, vale lembrar, que ultrapassa qualquer efeméride.

Enfoque ampliado

No que diz respeito às exposições, vale lembrar que as mostras comemorativas começaram já em 2021, com “Moderno Onde? Moderno Quando? A Semana de 22 como Motivação”, desenvolvida pelo MAM-SP, com curadoria de Regina Teixeira de Barros e Aracy Amaral, procurando ampliar olhar sobre o movimento.

A Semana de 22 faz parte de um amplo (e descontínuo) processo que a extrapola

“Reza o senso comum que a Semana de 22 foi um divisor de águas entre o velho e o novo. Entretanto, se nos debruçarmos sobre a produção (artística, musical, arquitetônica, literária) que antecede a Semana – e nos permitirmos considerar outras localidades do país além de São Paulo – encontraremos incontáveis evidências de que a Semana faz parte de um amplo (e descontínuo) processo que a extrapola”, explicaram, à época, as curadoras.

 Reprodução Facebook/ @theatromunicipalsp

No primeiro semestre de 2022, o próprio Teatro Municipal, sede da Semana, recebeu uma das principais revisões críticas, numa verdadeira (re)ocupação simbólica. Intitulada “Contramemória”, a exposição curada por Jaime Lauriano, Lilia Moritz Schwarcz e Pedro Meira colocou lado a lado obra modernistas pertencentes ao acervo municipal do CCSP e artistas contemporâneos, em sua maioria negros, indígenas, LGBTQ+. Logo na entrada, esculturas de um menino armado e de uma prostituta feitas por Flávio Cerqueira recepcionavam os visitantes. Já na obra “Encantados”, Denilson Baniwa inscreveu desenhos de inspiração xamânica sobre figurações históricas dos conquistadores. Remexer –a história, a estética – é preciso. Política, religião, sociedade: tudo merece uma revisita com olhar decolonial que dita hoje o tom principal da produção artística e cultural.

Vai no mesmo sentido de um olhar mais abrangente sobre a sociedade e o território, aqui com foco total no contemporâneo, a exposição “Um Século de Agora”, aberta à visitação até abril de 2023 no Itaú Cultural, em São Paulo. Na seleção de 70 obras de 25 artistas e coletivos de 11 estados brasileiros feitas pelo trio de curadoras – a sergipana Júlia Rebouças, a baiana Luciara Ribeiro e a matogrossense Naine Terena de Jesus – o panorama da atualidade repisa noções de tempo, história, tradição e nação. Está presente, por exemplo, o grupo Revolução Periférica, que em abril do ano passado incendiou a estátua de Borba Gato na avenida Santo Amaro, ou as pinturas de João Cândido da Silva, de 89 anos, um dos fundadores da escola de samba Unidos do Peruche, que apresenta um sugestivo autorretrato como preto velho.

Se algo faltou, talvez tenha sido a contundência: não houve nada que tenha verdadeiramente chocado a plateia

Ao longo de todo o ano, o Sesc-SP fomentou uma programação extensa intitulada “Diversos 22”, com seminários, cursos, publicações e múltiplas exposições. “Raio que o Parta: Ficções do moderno no Brasil”, por exemplo, foi o título dado à na unidade 24 de Maio buscando repensar a centralidade de São Paulo e do Sudeste – título foi inspirado por um estilo arquitetônico da Belém modernista. Algumas das (ótimas!) iniciativas estão ainda em cartaz: “Flávio de Carvalho: Experimental” e “A Parábola do Progresso” (Sesc Pompéia) e “Desvairar 22” (Sesc Pinheiros), que recupera alguns dos acontecimentos que marcaram aquele ano como a primeira transmissão de rádio no Brasil e a descoberta da tumba de Tutancâmon, transitando entre fatos e imaginação.

Sim, o centenário de 1922 foi (e é) abundante! Houve mesas dedicadas na Flip, seu componente musical esteve no centro do Festival de Inverno de Campos do Jordão, um documentário “22 em XXI” dirigido por Hélio Goldsztejn foi lançado, entre outros. Longe da província cafeeira de 1922, o que se tem hoje é uma rede de instituições e eventos sólidos e um mercado editorial consistente, com intelectuais dispostos a arregaçar as mangas para tocar em algumas de nossas principais feridas históricas. Ainda que cheio de contradições e inúmeras dificuldades, o meio cultural constituiu-se como tal e isso precisa ser celebrado.

Se algo faltou, talvez tenha sido a contundência da Semana. Foram muitos livros, muitos eventos, muitos discursos e muitas mostras, mas não houve nada, nem de longe, que tenha verdadeiramente chocado a plateia como a declamação de “Os Sapos”, de Manuel Bandeira, feita em meio às vaias na segunda noite da Semana. Perdemos em ousadia ou o volume excessivo de eventos e informações nos tornou mais indiferentes? Em 2122, à distância, saberemos. Viva o modernismo.

Este conteúdo é parte da série “Ecos de Outros 22”, produzida em parceria com o Itaú Cultural, uma organização voltada para a pesquisa e a produção de conteúdo e para o mapeamento, o incentivo e a difusão de manifestações artístico-intelectuais.

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