Via Ápia
Primeiro romance de Geovani Martins, autor de ‘O Sol na Cabeça’, é uma engenhosa narrativa sobre os impactos da UPP na vida dos moradores da Rocinha
O que acontece quando uma Unidade de Polícia Pacificadora chega até as vielas da Rocinha? Muito longe de trazer paz, a tropa de choque quer resolver os problemas da favela com uma única solução: a morte – mas a comunidade responde pulsando em vida. É sobre esse universo que Geovani Martins escreve em “Via Ápia”, seu romance de estreia e um lançamento da Companhia das Letras, que acompanha cinco jovens e suas vidas modificadas pela instalação da UPP.
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Autor do livro de contos “O Sol na Cabeça” (Cia das Letras, 2018), que teve forte repercussão internacional e foi publicado em mais de dez países, Martins traz novamente o morro e seus moradores para o centro da narrativa. A trama guia o leitor pelo cotidiano regular dos garotos, trazendo perspectivas cruzadas. Trabalho, jogos de futebol na TV, volta e meia um baseado. Logo, começa a especulação e a expectativa com relação à invasão – como o autor define – da polícia na favela. Em seguida, a instalação ruidosa da unidade.
“Você deve tá muito feliz, não é? Com a UPP a Rocinha agora vai ficar muito melhor agora…”, pergunta um personagem da trama. Ao que um dos protagonistas, Washington, sem conseguir imaginar muito bem o que pode acontecer e apenas refletindo como há tempos não ouve tiros na comunidade, responde: “Eu só espero que fique tudo bem pro morador”, e tenta encerrar o assunto. Com diálogos certeiros como este, que refletem os efeitos perversos da guerra às drogas, Geovani Martins, que está confirmado na Flip 2022, estreia seu romance – nas livrarias a partir de 23 de setembro.
Rio, 6 de junho de 2012
— Não, cara, isso aqui não tem nada a ver com o que eu tava te falando. — O Professor apontava pros muitos drogados em volta, pro monte de lixo espalhado. — Isso aqui, cracolândia? Isso aqui não tem nada a ver com droga. Até porque, se tu parar pra ver legal, droga tem em qualquer lugar, na Zona Sul, qualquer cidade do mundo. Eu te falei que era músico, né? Eu era não, eu sou, mas no momento eu tô parado… Só que escuta; meu irmão, eu já toquei em muito lugar de rico. Hotel, cruzeiro, a porra toda. O que esse povo usa de droga não tá no gibi. Esse negócio aí de coca rolando na bandeja de festa, com garçom levando canudo e os caralho? Meu irmão, eu vi. Ninguém me contou essa porra. Várias vezes. Vagabundo perdendo a linha, nariz sangrando já. Aplicando na veia, do pé, do braço, do pescoço. Tudo isso eu já vi. Gente rica. Aí tu me fala, cadê a cracolândia no Leblon, lá no Jardim Botânico? Isso aqui não tem nada a ver com a droga. Um lugar desse aqui, quem faz é a pobreza, morô? É a miséria mesmo. É o desespero pra conseguir sobreviver, sabendo que tu vai ter que trabalhar que nem um filho da puta pra encher o cu dos outros de dinheiro, ônibus lotado todo dia, essas porra toda. Isso pra não falar em quem perdeu família de bobeira aí com bala perdida, várias merdas, todo dia é uma diferente.
Wesley acendeu um cigarro e ofereceu outro ao Professor. Aquele maluco chegava a dar um nó em sua cabeça; se tava ligado em tanta coisa, como é que chegou naquele ponto? Com a roupa toda rasgada, vários dentes faltando na boca. Wesley queria muito perguntar, mas, na real, tinha medo da resposta.
— Tá vendo, Professor. Bagulho é ficar só no baseado mermo.
— Baseadim é bom. — O Professor deu um trago fundo no cigarro, como se lembrasse naquele momento de todos os baseados que já curtiu na vida. — Acalma, bom pra dar aquela dormida de tarde, aquela namorada… É bom, é bom. Mas aí já é um outro problema, morô? Neguinho começa fumar um, nem imagina o tamanho da merda. Mas tu já parou pra pensar por que é que a polícia vai que nem bicho atrás de maconheiro? — Ele fez uma pausa, talvez esperando uma resposta, mas como Wesley continuou parado sem dizer nada, continuou o papo: — Isso é ordem lá de cima, morô? De senador, de empresário… O problema da maconha, pra esses caras, é que a maconha só dá vontade de não fazer nada, tô mentindo? E se nós aqui não fazer nada, meu irmão, não limpar o chão, não proteger o cofre do banco, não fazer a comida, eles tá fodido, morô? Porque para tudo, não tem condição. Os cara não sabe fazer nada sozinho, só mandar. Por isso eles precisa de nós trabalhando pra eles, o tempo todo, tu me entende? É por isso que eles prefere ver um preto na cadeia do que fumando maconha, morô? Porque aí fica pelo menos de exemplo.
Nessa mesma hora, ouviram três tiros, mais ou menos ali perto. Wesley tomou um susto, como alguém que desperta no meio de um pesadelo. O medo fez com que endireitasse a coluna, se mantendo em posição de alerta. Em toda a cidade do Rio de Janeiro, todo mundo sabe como são as operações ali no Jacarezinho, mesmo aqueles que nunca pisaram na favela sabem de ler nos jornais, de ver na televisão. Apesar da fama, os disparos não foram suficientes pra assustar as pessoas na linha do trem, que seguiram fazendo suas paradas na maior tranquilidade.
— Ouviu isso? Eles quer botar uma upp aqui agora.
— Tô ligado — Wesley respondeu, tomado pelo medo.
Queria se levantar e pegar logo o trem, mas tinha a impressão de ver os policiais se aproximarem do outro lado da estação. Agora não sabia mais o que era verdade, o que era neurose, sabia que tava na onda, da mesma forma que sabia estar com flagrante, sabia que tava no meio da Faixa de Gaza e sabia que vários naquela mesma posição não ficaram pra contar a história. Ouviram mais rajadas de metralhadora.
— Eles vão pacificar nós! Vão pacificar! — o Professor começou a gritar cada vez mais alto, como se tivesse numa competição com os tiros e fogos que se ouviam em volta. Ele gritava contra o barulho da guerra e ria forte uma gargalhada que reforçava ainda mais os dentes que tinha faltando na boca.
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