Todas as Cartas
Novo livro reúne correspondência escrita por Clarice Lispector ao longo da vida e revela conversas inéditas com outros escritores brasileiros
POR QUE LER?
Em geral, bastaria dizer: porque é Clarice Lispector. Porém, bombardeado por todo tipo de coletânea, biografia, edição definitiva e (por que não?) frase de efeito na internet, o leitor há de querer saber o que traz de novo outra publicação dos escritos da provavelmente mais célebre autora brasileira de todos os tempos. E a resposta é: cartas. Centenas delas, endereçadas a amigos, a outros escritores, a editores — para Clarice, que viveu fora do Brasil por quase 20 anos entre as décadas de 1940 e 1950, as epístolas eram uma extensão do país que ela deixou para trás. Da mesma forma que sentia a urgência de enviar notícias, ansiava por respostas — não só nesse período, mas ao longo de toda a vida.
“Todas as cartas”, apesar do título, não reúne exatamente tudo o que Clarice escreveu e colocou no correio: foram deixadas de fora pelos editores cartas consideradas pouco representativas, bilhetinhos banais e recados burocráticos — além de, claro, aquelas que ainda não foram descobertas e que com certeza existem. No entanto, somadas às já publicadas em outras ocasiões +, estão cerca de 50 epístolas inéditas enviadas a destinatários como João Cabral de Melo Neto (veja no trecho reproduzido a seguir), Rubem Braga, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Nélida Piñon, Lygia Fagundes Telles e Mário de Andrade.
Junto a abundantes (e imprescindíveis) notas da biógrafa Teresa Montero sobre o contexto temporal, espacial e cultural em que as trocas se deram, o livro revela novos aspectos da biografia da escritora, conversas literárias, nuances de seu processo criativo, inquietações íntimas, traços de seu humor e personalidade. Mergulhar na correspondência de um escritor ostensivamente celebrado e lido, afinal, é descobrir que, por mais que tentem os biógrafos e pesquisadores, há sempre uma nova miudeza a ser desvendada.
No caso de Clarice, uma delas diz respeito ao próprio contexto de publicação desse novo volume: embora sua vida e obra tenham sido esmiuçadas, ninguém sabe ao certo quando ela nasceu na Ucrânia — em uma das cartas, ela diz ao escritor espanhol Jose Luis Mora Fuentes que tinha “duas datas de aniversário”. Documentos da imigração falam em 10 de dezembro de 1920 (sua família desembarcou no Brasil no ano seguinte), o que marcaria seu centenário neste ano. Por isso, “Todas as Cartas”, resultado de uma robusta pesquisa da jornalista Larissa Vaz com a ajuda de especialistas e da família da autora, chega às livrarias junto à reedição oportuna e comemorativa de outras obras, como o romance “A Maçã no Escuro” (Rocco, 2020).
[A João Cabral de Melo Neto]
Berna, 28 de novembro de 1947
Caro João Cabral,
você veio me trazer graves problemas: sua tipografia mágica vai ou não imprimir coisas minhas? acho que não. Logo que recebemos sua carta, comecei por despejar todas as gavetas da casa no chão. Nunca perco as esperanças de ter escrito, pela mão de Deus, uma coisa maravilhosa. Mas que joia, que nada. Esboços e esboços, maus esboços. A tentação de ter ao menos uma página impressa assim particularmente por você, é grande. Descobri mesmo uma peça de teatro em 1 ato! minha alegria foi grande. Imediatamente comecei a ler, cheia de curiosidade e grande benevolência. Mas, sabe, acontece que a peça não presta mesmo. Ela tem, é verdade, um coro de anjos* que me enche de orgulho. Mas bastará coro de anjo? essa é a questão. Os anjos se transformam no fim em menino e menina. Há também um sacerdote. E uma mulher que vai ser queimada viva. E é claro, o amante vem à tona, com marido e tudo. Enfim, é uma pena: não presta mesmo, para minha desilusão já habitual. E agora o problema é este: devo escrever “especialmente” alguma coisa para sua tipografia? bem queria (apesar de não me dar bem com escrever coisas “especialmente”) — bem queria, mas estou toda aérea, e quando não estou aérea só consigo mesmo me interessar por esse romance caduco que se está escrevendo há tanto tempo mas nunca fica bastante maduro.
Mas a ideia e a tentação não me abandonam. A primeira coisa que eu escrever, fora do romance, mandarei para você — se você ainda me aceitar…
Como vai a bandeirante? lamentei muito não a conhecer, e nem poder conversar direito com você — o que seria tão bom para mim. Escreva, ao menos, contando sobre vocês, contando sobre se trabalho, o que tem escrito — como vai a antologia dos touros?
Maury manda um grande abraço, e eu idem para vocês.
Clarice
Vocês não pensam em conhecer a Suíça? Está aí uma notícia ótima a receber de vocês — e sugiro que ela venha o + depressa possível.
*”O Coro de Anjos” é a única peça teatral escrita por Clarice Lispector, que a intitulou: “A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos”. Clarice não a enviou a João Cabral de Melo Neto na ocasião. Somente próximo ao nascimento de seu primeiro filho, Pedro, em setembro de 1948, foi que ela colocou um ponto final no texto.
[A Mora Fuentes]
Rio, 25 de maio 1974
Meu amigo, meu muito grande amigo,
seu conto é uma das melhores coisas que tenho lido ultimamente. Não, não é uma das melhores: é a melhor. Você tem mais coragem que eu e escreve melhor do que eu. Você é uma estrela espoucando no ar branco.
Os dois quadros encantam todo o mundo que vem aqui em casa. Mandei também por vitrais na bandeira de uma porta que foi arrancada, isto é, a porta. Quero muito que você possa vir ao Rio para eu ver você, e você ver os quadros e os vitrais.
Você captou bem. Ando inquieta. Tenho pesadelos. Sonhei que estava cozendo com linha preta uma porta de vidro, e dava nó embaixo. Aí eu via que havia ali dois homens dormindo: um preto e um branco. Eles vieram com papéis para a minha casa e eu tinha que pagar 7 mil. Ou melhor: só o branco vinha me cobrar esse dinheiro. Antes sonhei que era escorraçada por uma cidade porque tinha remédios na mala e porque eu dizia a todo mundo a verdade. Fauzi Arap*, com quem acabo de estar, me disse que eu estava fechando o mundo, não o deixando entrar em mim, mas que o fato de ser o homem branco a me cobrar, e a quantia ser 7, indicava que minha parte clara quer aparecer.
Olhe, Mora Fuentes, que Deus te abençoe. Mas falta um terceiro quadro. Quer fazer um para mim? eu queria ter três coisas suas.
Se você quiser, eu tentarei (não sei fazer, nunca fiz), eu tentarei fazer a orelha do seu livro de contos. Acho que você vai publicar lá para setembro, está bem? Mas juro que não sei se sei fazer. Sempre me recusei. Mas no caso de agora, o seu, eu tentarei. Começo assim: Meu Deus do Céu, pois não é que surgiu um escritor que brilha como uma estrela que se espatifa em faíscas:
Se tudo isso o que estou escrevendo acontecer, guarde essa minha primeira frase para eu escrever a orelha porque eu não tenho memória.
Quero muito o meu terceiro quadro. Você pode fazer?
E quando você vier me ver, antes me avise porque eu posso estar viajando, e me telefone: meu telefone é: 337-6792. Eu tenho a impressão de que vou receber você vestida de branco.
Quem é você? Você é deste mundo? é palpável? é monge?
Escreva-me, estou esperando.
Clarice
Pensando melhor, não é assim que se faz orelha de livro. Que é que você acha?
*Fauzi Arap (1938-2013), ator, diretor e dramaturgo. Autor e diretor da primeira adaptação teatral de uma obra de Clarice Lispector. “Perto do Coração Selvagem” reuniu trechos de várias obras e ficou em cartaz no Teatro Maison de France, em dezembro de 1965. Sua Amizade com Clarice lhe deu a oportunidade de ser o leitor de uma das versões preliminares de “Água Viva”. Um trecho desta obra foi inserido em “Rosa dos Ventos – Um Show Encantado” (1971), de Maria Bethânia. Um sucesso absoluto. Segundo Fauzi Arap: “ela acabava ganhando mais com sua participação na bilheteria do show do que com a publicação de muitos de seus livros” (Cf. “Mare nostrum: sonhos, viagens e outros caminhos”. São Paulo: Senac, 1988). A ligação de Clarice com Fauzi Arap demonstra como ela estava aberta a dialogar com artistas de diferentes linguagens.
- Todas as Cartas
- Clarice Lispector
- Rocco
- 864 páginas
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