Trecho de Livro: Noite no Paraíso, de Lucia Berlin — Gama Revista

Trecho de livro

Noite no Paraíso

Autora norte-americana que ficou famosa somente depois da morte, Lucia Berlin ganha novo livro de contos após “Manual da Faxineira”

Leonardo Neiva 12 de Agosto de 2022

Se você ainda não ouviu falar em Lucia Berlin, não se preocupe. A autora e professora universitária norte-americana é um desses raros artistas “descobertos” pelo público só depois de morrer — no caso dela, bem recentemente. Mais precisamente, cerca de 11 anos após sua morte, com a publicação do livro “Manual da Faxineira” (Companhia das Letras, 2017) em 2015 no mercado literário americano. O volume reuniu seus contos publicados ao longo de décadas em periódicos e coletâneas esparsos e se tornou um best-seller instantâneo, passando a figurar nas listas de melhores livros do ano de jornais como New York Times e El País.

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Com seus dotes literários rapidamente reconhecidos por público e crítica, Berlin subiu à posição de uma das melhores contistas americanas do século 20. Posto que só se firma ainda mais agora com a publicação deste “Noite no Paraíso” (Companhia das Letras, 2022), que reúne pouco mais de duas dezenas de outros contos da escritora. Do Texas ao Chile, as histórias se passam todas em lugares onde Berlin morou ao longo da vida, mesclando profundidade e leveza em relatos cotidianos, que atravessam temas que também fizeram parte da vida da autora, como alcoolismo e solidão.

Embora não tivesse ganhado grande destaque como escritora aos olhos do público até pouco tempo atrás, Berlin já era reconhecida e consideravelmente premiada no meio literário. Com uma história de vida bastante atribulada, tendo trabalhado como enfermeira, telefonista e assistente num consultório médico enquanto buscava meios de criar quatro filhos de três casamentos diferentes, ela conseguia carregar para seus contos essa gama de vivências ecléticas em tramas com personagens psicologicamente complexos. Seja nas lembranças infantis de um verão ou no relato surpreendentemente leve de um acidente mortal, a autora reuniu de forma natural em suas histórias a noite que integra o título de seu último livro com uma tarde ensolarada de domingo.


Do pó ao pó

Michael Templeton era um herói, um Adônis, um astro. Um herói de verdade, já que era um bombardeador muito condecorado da Royal Air Force. Quando voltou para o Chile depois da guerra, tornou-se um astro dos esportes como jogador do time de rúgbi e críquete do Prince of Wales. Também pilotava sua moto BSA para a equipe britânica de motociclismo e tinha sido campeão por três anos. Nunca perdia uma corrida. Venceu até mesmo a última corrida que disputou, antes de derrapar e bater no muro.

Ele tinha conseguido lugares para Johnny e para mim no camarote da imprensa. Johnny era o irmão mais novo de Michael e meu melhor amigo. Idolatrava Michael tanto quanto eu. Johnny e eu desdenhávamos de tudo naquela época e sentíamos desprezo pela maior parte das pessoas, principalmente pelos nossos pais e professores. Até reconhecíamos, com certo escárnio, que Michael era um cafajeste. Mas ele tinha estilo, prestígio. Todas as garotas e mulheres, até as mais velhas, eram apaixonadas por ele. Pela sua voz grave, pelo seu jeito vagaroso de falar. Ele levava Johnny e a mim para dar voltas pela praia de Algarrobo na garupa da sua moto. Voando pela areia dura e molhada, afugentando bandos de gaivotas, o barulho das suas asas batendo mais alto que o do motor, que o do mar. Johnny nunca debochava de mim por eu estar apaixonada por Michael, até me dava fotos e recortes de jornais e revistas, das sobras daqueles que ajudávamos a mãe dele a colar em álbuns de recortes.

Mesmo com o choque da sua morte, mesmo com a moto em chamas, com o sangue dele no muro de concreto (…) tudo teve aquela impassibilidade relaxada tão característica de Michael

Seus pais não foram à corrida. Estavam sentados à mesa da sala de jantar, tomando chá com biscoitos. O chá do sr. Templeton na verdade era rum, que ele tomava numa caneca azul. A mãe de Michael estava chorando, enlouquecida de preocupação com a corrida. Ele ainda vai acabar me matando, disse ela. O sr. Templeton disse que estava torcendo para que Mike quebrasse aquela maldita cabeça dura dele. Não era só por causa da corrida… os dois tinham conversas desse tipo praticamente todo dia. Embora fosse um herói, Michael ainda não tinha arranjado um emprego três anos depois de voltar da guerra. Bebia, jogava e se metia em encrencas sérias com mulheres. Conversas telefônicas sussurradas e visitas tarde da noite de pais ou maridos, que saíam batendo a porta com toda a força. Mas as mulheres só ficavam cada vez mais fascinadas com ele e havia gente que chegava a insistir em lhe emprestar dinheiro.

O estádio estava lotado e festivo. Os pilotos e as suas equipes eram glamourosos, charmosos italianos, alemães, australianos. Os principais competidores eram a equipe britânica e a argentina. Os ingleses pilotavam BSAs e Nortons; os argentinos, Moto Guzzis. Nenhum dos pilotos tinha a desenvoltura de Michael, seu ar imperturbável, sua echarpe branca. O que estou querendo dizer é que, mesmo com o choque da sua morte, mesmo com a moto em chamas, com o sangue dele no muro de concreto, seu corpo, a gritaria e as sirenes, tudo teve aquela impassibilidade relaxada tão característica de Michael. O fato de ser a última corrida e de ele tê-la vencido. Johnny e eu não falamos nada, nem sobre o terror nem sobre o drama do que aconteceu.

A sala de jantar da casa estava abarrotada e barulhenta. A sra. Templeton tinha frisado o cabelo e empoado a cara. Estava dizendo que aquela tragédia seria a sua morte, mas na verdade estava cheia de vida, fazendo chá, servindo bolinhos, atendendo ao telefone. O sr. Templeton não parava de dizer “Eu falei pra ele que ele ia acabar quebrando aquela maldita cabeça dura! Eu falei!”. Johnny lembrou o pai que ele tinha dito que torcia para que aquilo acontecesse.

Era empolgante. Fazia anos que ninguém além de mim visitava os Templeton, e agora a casa estava cheia. Havia repórteres do Mercurio e do Pacific Mail. O nosso “álbum do Michael” estava aberto em cima da mesa. Por todo canto da casa havia gente dizendo herói, príncipe, trágico desperdício. Viam-se grupos de moças bonitas no andar de cima e no andar de baixo. Uma das moças chorava, enquanto duas ou três delas faziam carinho nela e lhe traziam lenços de papel.

Johnny e eu mantivemos a nossa costumeira postura de desdém zombeteiro. Ainda não havíamos realmente nos dado conta de que Michael tinha morrido, o que só aconteceria no sábado à noite, depois do funeral. Essa era a hora em que costumávamos ficar sentados na beira da banheira enquanto ele fazia a barba, cantarolando “Saturday Night is the Loneliest Night in the Week”. Ele nos contava as histórias dos seus “brotos”, listando suas qualidades e inevitáveis — e engraçadíssimos — defeitos. No sábado depois que ele morreu só ficamos sentados dentro da banheira. Não choramos, só ficamos sentados lá, falando sobre ele.

A sra. Templeton tinha frisado o cabelo e empoado a cara. Estava dizendo que aquela tragédia seria a sua morte, mas na verdade estava cheia de vida, fazendo chá, servindo bolinhos

Mas a gente se divertiu observando a agitação antes do funeral, as rivalidades entre as namoradas de luto. O mais espantoso de tudo foi o modo como a colônia britânica inteira de Santiago resolveu que Michael havia morrido pelo rei. Glória ao Império, publicou o Pacific Mail. Cheia de energia, a sra. Templeton pôs a nós e às empregadas para bater tapetes, passar óleo nos corrimões, assar mais bolinhos. O sr. Templeton só ficou lá sentado com a sua caneca azul, resmungando que Mike nunca ouvia ninguém, era obstinado demais.

Recebi permissão para sair mais cedo da escola para ir ao enterro. Não teria nem ido à aula, mas fui porque tinha uma prova de química depois do intervalo. Após a prova, tirei meu avental e o guardei no meu armário da escola. Estava muito compenetrada e destemida.

Há coisas sobre as quais as pessoas simplesmente não falam. Não estou me referindo às coisas difíceis, como o amor, mas às coisas embaraçosas, como, por exemplo, sobre como funerais às vezes são divertidos ou como é empolgante ver prédios pegando fogo. O funeral de Michael foi maravilhoso.

Naquela época ainda existiam carruagens fúnebres. Imensas carroças rangentes, puxadas por quatro ou por seis cavalos pretos. Os cavalos usavam antolhos e eram cobertos com grossas redes pretas, com borlas que arrastavam no chão da rua, juntando poeira. Os cocheiros usavam fraque e cartola e traziam consigo um chicote. Por causa do status de herói de Michael, várias organizações haviam dado contribuições para o funeral, de modo que havia seis carruagens fúnebres. Uma era para o corpo dele e as outras para as flores. Os familiares e amigos seguiram as carruagens em carros pretos.

Durante a cerimônia na (alta) igreja anglicana Saint Andrew, várias das moças tristes desmaiaram ou tiveram que ser levadas embora por estarem comovidas demais. Do lado de fora, magros e faceiros, os cocheiros fumavam no meio-fio com suas cartolas. Tem gente que sempre associa o perfume penetrante das flores com funerais. Para mim, ele precisa estar misturado com o cheiro de esterco de cavalo. Estacionadas do lado de fora estavam também mais de cem motocicletas, que seguiriam o cortejo até o cemitério. Motores roncando, engasgos, fumaça, estouros em canos de descarga. Os pilotos todos de couro preto, com capacetes pretos, o emblema de suas equipes na manga. Seria uma atitude de mau gosto da minha parte falar para as meninas na escola da multidão de homens inacreditavelmente lindos que tinha ido ao funeral. Mas eu falei mesmo assim.

Fui no mesmo carro que os Templeton. No caminho inteiro até o cemitério, o sr. Templeton ficou brigando com Johnny por causa do capacete de Michael. Johnny estava com o capacete no colo e planejava botá-lo na sepultura, para ser enterrado junto com Michael. O sr. Templeton argumentava, sensatamente, que capacetes eram difíceis de comprar e muito caros. Você tinha que pedir para alguém trazê-los da Inglaterra ou dos Estados Unidos e tinha que pagar um imposto altíssimo por eles ainda por cima. “Vende para algum outro infeliz que goste de disputar corridas”, ele insistia. Johnny e eu trocamos olhares. Você já não sabia que ele só ia pensar no dinheiro?

Seria uma atitude de mau gosto da minha parte falar para as meninas na escola da multidão de homens inacreditavelmente lindos que tinha ido ao funeral. Mas eu falei mesmo assim

Trocamos mais olhares e caretas no cemitério em si, com todas aquelas tumbas, criptas e anjos. Decidimos que seríamos enterrados no mar e prometemos ir ao enterro um do outro.

O cônego, com uma veste branca e rendada e por cima de uma batina roxa, se postou na cabeceira do túmulo, cercado pelos pilotos da equipe de corrida britânica, todos com seus capacetes debaixo do braço. Nobres e solenes, como cavaleiros. Enquanto o caixão de Michael era depositado no fundo da cova, o cônego disse: “O homem, nascido de mulher, tem a vida curta e cheia de tormentos. É como a flor que se abre e logo murcha”. Enquanto ele dizia isso, Odette atirou uma rosa vermelha na cova, depois Conchi fez o mesmo e, em seguida, Raquel. Empertigada e com ar desafiador, Millie deu alguns passos à frente e jogou um buquê inteiro lá dentro.

Foi maravilhoso o que o cônego disse, então, diante do túmulo. Ele disse: “Ensinar-me-ás o caminho da vida, cheio de alegrias em tua presença e delícias à tua direita, perpetuamente”. Johnny sorriu. Percebi que ele achou que isso era a melhor coisa que alguém poderia ter dito a Michael. Olhando em volta para ver se mais alguém pretendia jogar rosas, Johnny foi até a beira da cova e jogou o capacete de Michael lá dentro. Ian Frazier, o piloto que estava mais perto do túmulo, deu um grito sentido e, num impulso, atirou o próprio capacete em cima do de Michael. E aí foi tum tum tum, enquanto, como que hipnotizados, os membros da equipe de corrida britânica iam jogando, um a um, seus capacetes em cima do caixão. Não só enchendo a cova, mas formando uma pilha de domos pretos, feito uma porção de azeitonas. Pai misericordioso, dizia o cônego enquanto os dois coveiros jogavam terra em cima da pilha e a cobriam com coroas de flores. Todo mundo cantou “God Save the King”. Nos rostos dos pilotos se viam expressões de tristeza e perda. Depois, todos foram se retirando em fila, cabisbaixos, e então se ouviram estrondos e roncos de motocicletas e um ecoante estrépito de cascos quando as carruagens fúnebres saíram a galope, adernando perigosamente, os chicotes estalando, as abas dos fraques pretos dos cocheiros tremulando ao vento.

Produto

  • Noite no Paraíso
  • Lucia Berlin
  • Companhia das Letras
  • 304 páginas

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