Iguais Perante a Lei
Quer entender como funciona um processo judicial ou um habeas corpus? Em novo livro, advogado Augusto de Arruda Botelho apresenta a Justiça brasileira para leigos
Conselheiro da organização internacional Human Rights Watch e um dos fundadores do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, Augusto de Arruda Botelho é considerado um dos maiores advogados criminalistas do país atualmente. Mas, apesar de sua vasta experiência no campo do direito e da Justiça brasileira, nem por isso ele perdeu a paciência com quem está começando.
Em seu novo livro, “Iguais Perante a Lei” (Planeta, 2021), Botelho deixa na gaveta o “juridiquês”para apresentar um pouco do funcionamento e algumas das regras essenciais do nosso sistema de justiça para quem ainda é leigo no assunto — estatística que infelizmente ainda engloba boa parte da população. Como funciona um processo judicial? O que fazer se você for vítima de violência doméstica? E se for detido durante uma manifestação? Para essas e outras dezenas de perguntas, o livro traz respostas concretas, além do conhecimento mínimo necessário para que o leitor encontre caminhos para lutar pelos seus direitos.
“Não tenho a pretensão de que você, ao acabar estas páginas, saia daqui um(a) jurista”, escreve o advogado no texto introdutório do livro — no qual também faz duras críticas à TV Justiça e à imprensa, à espetacularização que geram e sua influência sobre o andamento de processos judiciais no país. “Quero somente dar uma contribuição para que, naquela mesa de bar, você pelo menos não passe vergonha”, conclui.
A seguir, Gama publica um dos capítulos em que Botelho desmistifica algumas ideias pré-concebidas sobre nosso sistema judiciário.
O Brasil é o país da impunidade
Como o país que possui a terceira maior população carcerária do mundo pode ser considerado impune? Pois é: apenas com base nesse dado — mas não só — conseguimos iniciar a desmistificação deste primeiro folclore tão enraizado em nossa sociedade.
A sensação de impunidade, me parece, está muito mais atrelada a duas coisas. A primeira são os índices de criminalidade ou, pelo menos, a sensação do avanço da criminalidade nas grandes capitais. Apesar de determinados crimes terem uma pequena e quase inexplicável redução ao longo dos anos, a imensa maioria só aumenta. Mais do que isso, a violência cotidiana, aquela que acontece na porta de casa, típica das grandes metrópoles, só aumentou.
Portanto, é natural que a primeira resposta que venha à cabeça seja que a criminalidade aumenta porque a lei e a justiça são brandas demais; logo, reinamos numa tal “impunidade”.
A segunda — e entendo como sendo a mais grave, de solução mais difícil — é a preocupante e evidente demora do nosso sistema judiciário. Somos um país que litiga demais. Sabemos que o brasileiro adora um “processinho”. Processamos o vizinho porque seu cachorro não para de latir. Processamos um familiar por uma desavença trivial. Processamos uma pessoa que bateu no nosso carro. Em resumo, acionamos a justiça para dirimir conflitos muitas vezes simples.
Como o país que possui a terceira maior população carcerária do mundo pode ser considerado impune?
Por outro lado, há uma ausência de alternativas à solução de conflitos que não envolva membros do sistema judiciário. Não investimos em justiça consensual, em justiça restaurativa, em arbitragem e outros métodos alternativos de solucionar uma disputa. O resultado é conhecido: milhões de processos em trâmite, dos mais variados temas, são apresentados à justiça todos os dias. E um processo bobo — sim, é essa a palavra —, um processo inútil, um processo que poderia ter sido resolvido em cinco minutos de outra forma atrasa ainda mais a justiça.
Vamos imaginar uma briga de vizinhos que se xingam e se importunam. Essa picuinha, ao chegar à justiça, é um processo a mais sobre o qual um juiz, um promotor, eventualmente, um desembargador, até um ministro, vai ter que se debruçar em algum momento. Para você ter uma ideia, chegam ao Supremo processos sobre o furto de dois xampus, uma margarina e uma nota de 50 reais. Nós não poderíamos ter resolvido isso lá atrás, entre as partes envolvidas? Claro que sim.
De outro lado, as soluções para resolver o problema da lentidão sempre passam pela estratégia mais equivocada e mais perigosa: cercear direitos e garantias. É comum ouvirmos que, para tornar a justiça mais rápida, basta limitar o número de “recursos protelatórios” que os advogados “endinheirados” apresentam para “atrasar” o processo. Como se isso fosse resolver alguma coisa.
Já adianto a você: não vai. É muito mais inteligente, eficaz e justo evitar que um processo chegue à justiça do que limitar os recursos daqueles que lá tramitam. Eu poderia passar aqui páginas refletindo sobre a lentidão e o que fazer para resolver, mas, por ora, basta notarmos que a lentidão da justiça traz uma inevitável sensação de impunidade. Um crime que ocorre hoje e só é punido daqui a dez anos, por mais alta que seja a pena, por mais tempo que o autor do crime permaneça preso, gera uma sensação para a vítima — e indiretamente para toda a sociedade — de que ficou impune.
Mas, quando observo a superpopulação carcerária, afirmo que o Brasil não é o país da impunidade. O Brasil é um país onde se prende muito e, sobretudo, prende-se muito mal. A sociedade brasileira é estruturalmente racista e punitivista. Aqui, acredita-se que a prisão sempre deve ser rápida, quase imediata, se possível até sem processo. Ela tem que acontecer minutos depois da prática de um crime. Mesmo sem julgamento, sem o cuidado de se verificar se aquela pessoa é culpada ou inocente. Por quê? Porque, no Brasil, prisão é sinônimo de vingança, e não sinônimo de ressocialização.
A sociedade brasileira é estruturalmente racista e punitivista. Aqui, acredita-se que a prisão sempre deve ser rápida, quase imediata, se possível até sem processo
Temos que ter em mente o seguinte: a lei penal brasileira não prevê o cumprimento de pena superior a quarenta anos. Na prática, isso significa que o pior criminoso do nosso país, se condenado a centenas de anos de cadeia, em quarenta anos estará nas ruas. A pergunta que você tem que se fazer é esta: você quer que esse criminoso saia do presídio melhor ou pior?
Vamos voltar para o exemplo do capítulo anterior. Felipe, um jovem de 20 anos, roubou o celular de Ana, de 45 anos, com o uso de uma faca, em plena Avenida Paulista. Pense em Felipe e refaça a pergunta: você quer que ele volte para a mesma esquina e assalte de novo? Ou até coisa pior?
Se você quer que ele melhore e não cometa mais crimes, então repense as finalidades de uma prisão. Se a finalidade for devolver à sociedade alguém melhor, o Brasil está fazendo tudo errado. Todos os dias, devolvemos homens e mulheres mais comprometidos com a criminalidade. Na maior parte, o jovem pobre, negro e primário — o que é mais punido pelo nosso sistema penitenciário — torna-se presa fácil de facções criminosas. É clichê, eu sei, mas é verdade. Colocamos um jovem primário na cadeia, muitas vezes preso e condenado por um crime cometido sem a prática de violência, e recebemos um homem mais velho e mais perigoso.
Depois de fazer essa reflexão, vamos conhecer detalhadamente o perfil do preso no Brasil. Você provavelmente não sabe que temos um número assustadoramente alto de presos provisórios, aqueles sem condenação definitiva. Em alguns estados, esse número ultrapassa 40%. Em outros, entre as mulheres, o número chega a revoltantes 50%. Ou seja, a metade das mulheres presas de alguns estados está presa sem condenação definitiva; logo, são inocentes até que se prove o contrário.
Este espírito punitivista da sociedade brasileira também está enraizado em setores da imprensa e, principalmente, em setores do Poder Judiciário — mais especificamente entre juízes de primeira instância e tribunais de justiça —, o que produz essa realidade desastrosa.
A pergunta que você tem que se fazer é esta: você quer que esse criminoso saia do presídio melhor ou pior?
Tratamos a prisão preventiva como regra, quando a lei processual penal, em vários artigos, a trata como exceção. O resultado é um número excessivo, ilegal, de presos em nossas cadeias. E uma cadeia superlotada, cheia, sem condições mínimas sanitárias, humanitárias, sociais e hospitalares não ressocializa ninguém.
Criamos em nosso país um verdadeiro círculo vicioso. Primeiro, prendemos desnecessariamente, antes do tempo, pessoas que não precisavam responder a processos presas. Depois, nós as largamos em verdadeiras masmorras (o que o STF já entendeu como inconstitucional), não passamos nem perto de ressocializá-las e as devolvemos poucos anos depois ainda mais envolvidas com a criminalidade.
Ou seja, é também uma bola de neve: não diminuímos a criminalidade, não nos sentimos mais seguros, não resolvemos nenhum problema.
- Iguais Perante a Lei
- Augusto de Arruda Botelho
- Planeta
- 256 páginas
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