Dia Garimpo
Praticamente esquecida por mais de 80 anos, obra da poeta modernista Julieta Barbara é relançada no centenário da Semana de 1922
Por mais de 80 anos, as poesias do livro “Dia Garimpo” (Círculo de Poemas, 2022), de Julieta Barbara (1908-2005), permaneceram praticamente esquecidas do grande público. Lançada em meio ao modernismo e representando um raro grito literário feminino dentro do movimento, a obra da escritora nascida em Piracicaba, no interior de São Paulo, mescla temas voltados às manifestações culturais brasileiras, religião e sexualidade, registrados numa linguagem que bebe frequentemente da oralidade e do uso coloquial das palavras.
Mas por que o único livro publicado pela escritora, pintora e cronista se manteve invisível por tanto tempo? Existem ao menos algumas hipóteses. Além do período inacreditavelmente inoportuno em que a obra foi lançada — às vésperas de estourar a Segunda Guerra Mundial e pouco antes de uma viagem da autora à Europa –, o poeta e compositor Mariano Marovatto afirma, no posfácio do livro, que sua divulgação foi diretamente afetada pelo machismo da época e pelo fato de que Julieta era casada com o também poeta Oswald de Andrade (1890-1954), um dos maiores ícones do modernismo e que pode ter lançado uma sombra sobre sua arte.
Republicada em janeiro pelo clube de assinatura Círculo de Poemas, uma parceria entre as editoras Fósforo e Luna Parque, no ano do centenário da Semana de Arte Moderna, a obra conta ainda com ilustrações esboçadas pela própria autora, uma carta-prefácio do poeta Raul Bopp (1898-1984) e um retrato de Julieta pelo artista Flavio de Carvalho (1899-1973). Além do posfácio de Marovatto, o texto de orelha é de autoria da escritora Veronica Stigger.
No fim das contas, uma chance única de entrar em contato com a produção literária de uma autora do modernismo praticamente apagada pela história. A seguir, reproduzimos dois poemas e um trecho do posfácio que explora o contexto histórico do lançamento do livro.
Dia garimpo
Dia garimpo
Vestido limpo
Na água sabão
O azul caipira
Do céu burleta
Lavando o sol
Gosto de Alzira
De borboleta
Cheiro a amplidão
Pastava o gado
De girassol
Livre da canga
No capinzal
Papel colado
Flores de manga
Nuvens de sal
Suor bombacho
Trincando o céu
Alaga e alonga
A terra em cacho
Supina em baixo
Do meu chapéu
Gosto de Alzira
Sono araponga
Pastava o gado/
De girassol/
Livre da canga/
No capinzal/
Papel colado/
Flores de manga/
Nuvens de sal
Adolescente
Um arrepio mal sentido no peito
Entre a garganta e o coração
Uma espécie de frio
Que devia descer pelas veias dos ombros
Enquanto o bafo de sua boca
Como um murmúrio
Palpasse minha cintura contraída
Que eu devia sentir
No enfraquecimento das pernas
Aconchegado no meu sexo indefeso
Nos bicos dos seios prometidos
Um arrepio mal sentido
Entre a garganta e o coração
Uma espécie de frio
Que devia passar como uma vibração
Do meu corpo para o espaço
E acender lantejoulas
E engolir a amplidão
Um arrepio mal sentido no peito
Entre a garganta e o coração
Uma espécie de frio
Que não teve arremessos
Minha cabeça é o prato de uma balança cheia de pesos
Em minhas mãos se debate
A certeza dos meus órgãos funcionando
Dos meus nervos funcionando
Um arrepio mal sentido
Entre a garganta e o coração
Uma espécie de frio
Sem ruído
Monoplano
Que atingiria o leito macio
Das montanhas brancas
Amontoadas nas nuvens
Um arrepio mal sentido
Entre a garganta e o coração
Uma espécie de frio
Que teve que morrer
Como morrem os fuzilados
Sabendo que vão morrer
Sentindo a prisão da parede por trás
O ódio pela frente
A cabeça como o prato de uma balança cheia de pesos
Como morrem os fuzilados
Sabendo que vão morrer
Um arrepio mal sentido
No peito
Entre a garganta e o coração
Uma espécie de frio
Gestando uma vida
Que se desdobraria em ondas de outras vidas
Se tornaria o mar
Engoliria todos os peixes
De lantejoulas
Minha cabeça é o prato de uma balança cheia de pesos
Entre a garganta e o coração
Um arrepio mal sentido
Uma espécie de frio
Eu quero a espada de fogo
Cavaleiro São Jorge
Eu quero a liberação
Salomé
Corta minha cabeça rente dos ombros
Meu corpo desarvorado
Alcançará o mar
Engolirá todos os peixes
De lantejoulas
Engolirá o espaço
Engolirá as estrelas
O céu de Cristo
Pregado numa cruz
E as lágrimas dos homens
Enquanto o bafo de sua boca/
Como um murmúrio/
Palpasse minha cintura contraída/
Que eu devia sentir/
No enfraquecimento das pernas/
Aconchegado no meu sexo indefeso/
Nos bicos dos seios prometidos
Posfácio: Dia garimpo?
Mariano Marovatto
Dia garimpo chegou diretamente da gráfica em São Paulo para a Livraria José Olympio Editora em junho de 1939. Na capa, nenhum desenho. Somente as informações “Julieta Barbara / escreveu / desenhou / Dia Garimpo”. O livro, de setenta páginas, tinha tamanho 12 × 18 cm, aproximadamente, e trazia uma carta-prefácio escrita por Raul Bopp, um retrato da autora feito por Flávio de Carvalho e dedicatória aos pais de Julieta e a Oswald. Mas a rotina acidental do casal era tamanha que a poeta não teve a oportunidade e o prazer de ver os exemplares do seu primeiro e único livro expostos na vitrine da famosa casa editorial, na rua do Ouvidor, no centro da cidade. Após três meses de adaptação à vida intensa da capital federal, Julieta e Oswald se encontravam em São Pedro, vila vizinha a Piracicaba, em São Paulo, para que Oswald pudesse repousar. Por carta a Joaquim Inojosa, o autor de Serafim Ponte Grande havia pedido licença de seu posto de articulador e articulista do Meio-dia para cuidar da saúde, maltratada pelo calor e pelos vícios da metrópole carioca, prejudiciais à sua diabetes e à sua obesidade. Era necessário total repouso para que Oswald pudesse se estabelecer integralmente antes da viagem vindoura para a Europa, em agosto.
De volta em julho ao apartamento ainda sem mobília em Copacabana, o casal precisaria dar conta de uma série de pendências deixadas para trás, bem como dos preparativos da viagem. Um dia antes do navio Alameda Star zarpar do cais do Touring na baía de Guanabara em direção a Londres, Oswald e Julieta convidaram os amigos mais próximos para uma breve despedida. Graciliano Ramos, presente na ocasião, relembra no suplemento literário de Diretrizes que “enquanto Julieta Barbara distribuía volumes do seu último livro de versos, Oswald, entre boutades e risos, falava a respeito do congresso do PEN Clube que ia se reunir em Estocolmo”. O congresso, planejado para ocorrer entre os dias 4 e 7 de setembro, acabou sendo cancelado de última hora por conta do estopim da Segunda Guerra Mundial, deflagrado com a invasão nazista à cidade de Danzig, na Polônia. Julieta e Oswald, impedidos de ir para a Suécia, pularam de Londres para Paris, atravessaram a França de carona numa ambulância, tomaram um trem na Espanha e só conseguiriam retornar ao Brasil no final de outubro, num vapor vindo de Lisboa. Ao que parece, o encontro no dia anterior à partida para a Europa foi a única oportunidade na qual Julieta pôde comemorar a publicação de seu livro entre amigos e escritores. Conclui-se, portanto, que a divulgação de Dia garimpo tenha sido prejudicada por todos esses imprevistos e pelas contingências de ordem prática e pessoal. Porém, considerando que o ano era 1939, e que o mundo ainda fazia pouco caso do nazifascismo e desconhecia completamente a bomba atômica, a guerra fria e o neoliberalismo, foram duas as questões centrais que determinaram o silenciamento das qualidades de Dia garimpo:
1) Julieta era uma poeta estreante mulher em 1939;
2) Julieta era uma poeta estreante mulher em 1939, casada com Oswald de Andrade.
- Dia Garimpo
- Julieta Barbara
- Círculo de Poemas
- 112 páginas
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