Trecho de Livro: De Marte à Favela, de Aline Midlej e Edu Lyra — Gama Revista

Trecho de livro

De Marte à Favela

Livro da jornalista Aline Midlej e de Edu Lyra, da Gerando Falcões, acompanha projeto da ONG que transforma a realidade de favelas pelo Brasil

Leonardo Neiva 06 de Dezembro de 2024

De uma favela sem água potável ou moradia digna e com uma taxa de desemprego acima dos 70% para uma comunidade com casas novas e equipadas e uma da mais baixas taxas de desocupação do Brasil. Essa história de transformação, promovida pela ONG Gerando Falcões na Favela Marte, em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, está no cerne do livro “De Marte à Favela” (Planeta, 2024), escrito pela jornalista Aline Midlej e por Edu Lyra, empreendedor social fundador da organização.

A Marte é uma das quatro comunidades brasileiras que integram o projeto Favela 3D, que propõe transformar o ambiente precário desses locais não só em um panorama de vida mais digno para a população, mas também em um bairro integrado ao restante da cidade, em vez de à margem dela. Para contar a histórias desse projeto e das favelas até então impactadas por ele, Midlej narra a trajetória da própria Gerando Falcões e de Lyra, o homem por trás dela.

A obra mostra também como a organização desafia o lugar comum de que a fome e a miséria são partes intrínsecas da vida no Brasil. Em vez disso, os projetos tocados por Lyra deixam claro que é possível sim enfrentar os problemas com uma combinação de ações integradas, a formação de novas lideranças comunitárias, capacitação de profissionais, criação de bancos de dados, parceria com o empresariado e entidades governamentais, e incorporação de tecnologias. Além disso, o Favela 3D dribla o rótulo de iniciativa pontual, provomendo o acompanhamento do dia a dia da população, de forma a explorar ao máximo o potencial da favela e de seus moradores.


Favela Marte, a missão é aqui na Terra

“Marte não vai entregar todas as soluções para as favelas do país, mas vai mostrar que é possível.”
Edu Lyra

Quando cheguei à Marte, em junho de 2022, a favela vivia seus últimos dias de uma estética de favela. Em pouco tempo, todos os 240 barracos seriam demolidos para dar início ao processo de moradia digna e urbanização, um dos três eixos do Favela 3D. A imersão começou com uma verdadeira experiência antropológica que foi chegar a São José do Rio Preto, depois de pegar carona num jatinho do empresário Jorge Paulo Lemann, um grande sonhador que criou um império e, hoje, é um dos grandes mentores de Edu Lyra. Lemann, apesar do engajamento notório em projetos de educação e inclusão, me disse que não pisava numa favela desde a infância no Rio de Janeiro.

“Quando visitei a Favela Marte, pela primeira vez, fiquei chocado com a falta do básico. Mas o que mais me impressionou, apesar das ausências, foi um senso de comunidade muito grande. Mais do que uma casa, é fundamental dar oportunidades de trabalho e formação pra que essa casa se mantenha”, declarou ele.

Além de mim, entre os convidados para conhecer Marte estavam outros nomes importantes do mercado, como Guilherme Benchimol, CEO e fundador do Grupo XP, e Ana Maria Diniz, empresária e presidente do Instituto Península. Era a segunda viagem do tipo que a GF fazia para que seus investidores ilustres pudessem ver de perto a transformação na qual colocaram seu dinheiro e suas expectativas. Mas, mais do que isso, ali Edu também tentava iniciar uma nova relação entre aquelas pessoas com os espaços que sempre lhes pareceram hostis e inseguros. Depois de sobrevoar parte da desigualdade do maior e mais rico estado brasileiro, chegamos à única favela de São José do Rio Preto, no interior paulista, onde começou o projeto piloto de uma fábrica da cidadania.

Ali Edu também tentava iniciar uma nova relação entre aquelas pessoas com os espaços que sempre lhes pareceram hostis e inseguros

A mudança é atestada pelo “Dignômetro”, instalado logo na entrada da comunidade para todos verem o que se passa ali. O marketing é entendido como um ponto forte para a quebra de paradigmas, apesar de (por vezes) correr o risco da excentricidade. Fato é que, no fim de 2021, quando a GF chegou à Favela Marte — que se chamava Vila Itália —, a taxa de desemprego era de 70%, sendo 12% no Brasil na época. Um ano depois, enquanto escrevo estas linhas, a porcentagem está em menos de 7% na favela, ou seja, a melhor taxa de empregabilidade do Brasil, hoje, é numa favela 3D.

Apenas alguns minutos caminhando pela comunidade são suficientes para visualizar a MANDALA virando prática com a criação de espaços de inovação. O que está em andamento é a transformação da favela, não seu fim.

Uma metamorfose nada ambulante

A Favela Marte será um novo bairro incorporado à cidade, que também passará por uma espécie de reconciliação. Quando chegou à Marte para iniciar as conversas, Edu Lyra morou na comunidade por alguns dias em 2021. Não havia água potável, mas, sabendo da situação, o prefeito Edinho Araújo tratou — rapidamente — de enviar quatro caminhões-pipa para o local. Pode ser que ele tenha agido por constrangimento, diante daquela visita, mas o contexto foi aproveitado como uma oportunidade de recomeçar uma relação, de ouvir e construir as soluções juntos, de forma que nenhuma outra autoridade da cidade se sentisse em paz vendo a pobreza desincorporada daquela forma.

Dizem que houve até um pedido de desculpas da prefeitura, mas isso até perde relevância quando vemos os compromissos assumidos a partir dali. A prefeitura de São José do Rio Preto entrou com um investimento de cerca de 15 milhões de reais para atuar na desapropriação do terreno e nas obras de infraestrutura para distribuição de água, esgoto, iluminação e pavimentação pública.

O que está em andamento é a transformação da favela, não seu fim

Um convênio com a união de várias forças começava a ser embrionado e, no final de 2022, João Dória faria a formalização da contribuição do Governo do Estado, com 29 milhões de reais, focado na atuação da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano. Os empresários doadores da Gerando Falcões entraram com mais 15 milhões em outras frentes de assistência.

A promessa é entregar as casas prontas com geladeira, fogão, micro-ondas, interfone e chuveiro. Segundo a Secretaria de Habitação, a política de financiamento dessas moradias pelo CDHU tem três pontos: não existe análise de crédito; juros zero para as famílias no pagamento do financiamento; as prestações serão proporcionais a 20% da renda das famílias.

No dia da minha visita, o CDHU havia montado tendas para tratar dos lares provisórios que as famílias receberiam durante as obras na comunidade. “Vou levar só as roupas do meu bebê, que vai, finalmente, poder engatinhar. Daqui não se aproveita nada”, me disse a moradora Ana Rodrigues, de 27 anos. A nova favela Marte ainda não foi entregue, mas já se torna um modelo em que o apartidarismo — que guia a Gerando Falcões — parece demonstrar a eficiência da pauta social quando ela se sobrepõe a ideologias. A continuidade e, portanto, o combate sustentável da pobreza crônica dependem disso. Enfrentar a desigualdade deve ser uma ambição do Estado, não de governos específicos, com alto nível de comprometimento em todos os níveis. Em São José do Rio Preto, o prefeito Edinho Araújo e o governador João Dória atuaram de forma conjunta e as etapas de reconstrução de Marte já atravessam diferentes gestões estaduais. O Favela 3D teve continuidade nos governos de Rodrigo Garcia e Tarcísio de Freitas, resistindo ao tempo e a mudanças políticas.

Vou levar só as roupas do meu bebê, que vai, finalmente, poder engatinhar. Daqui não se aproveita nada

Produto

  • De Marte à Favela
  • Aline Midlej e Edu Lyra
  • Planeta
  • 144 páginas

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