Continuo Preta
Em minuciosa biografia da pensadora e ativista Sueli Carneiro, a jornalista e colunista da Gama Bianca Santana conta a história por trás de uma voz essencial para a luta das mulheres negras no Brasil
POR QUE LER?
“Entre a esquerda e a direita, sei que continuo preta.” A frase imortalizada por Sueli Carneiro, uma das principais pensadoras, intelectuais e ativistas brasileiras da atualidade, ajuda a dar título à sua recém-lançada biografia justamente porque também poderia ser usada para dar sentido à sua trajetória de vida. Ao longo de mais de 40 anos, Carneiro foi uma voz essencial para dar visibilidade às negras dentro do movimento feminista brasileiro e às mulheres dentro do movimento negro.
Tanto que o livro “Continuo Preta” abre com uma passagem reveladora, em que, durante um evento feminista nos anos 1980, o ator, dramaturgo e ativista negro Abdias do Nascimento discursa em nome das mulheres negras, praticamente ausentes do encontro. Ao final, é Sueli Carneiro quem surge da plateia para lhe garantir: “Não que não seja uma honra ser representada, mas o senhor não vai mais precisar nos representar. Porque nós vamos chegar.”
Poucas pessoas estariam tão à altura da tarefa de contar essa história quanto a escritora, jornalista e pesquisadora Bianca Santana, que, além de diretora-executiva da Casa Sueli Carneiro e ativista da Uneafro Brasil, é também colunista de Gama. Em 2020, após ser acusada por Jair Bolsonaro de propagar fake news contra sua família, recebeu um raro pedido de desculpas presidencial. Além disso, ganhou uma indenização por danos morais contra Bolsonaro, no valor de R$ 10 mil.
Autora de “Quando me Descobri Negra” (SESI-SP, 2016), em que evoca relatos pungentes sobre a negritude, Santana traz à tona em seu novo livro o resultado de uma pesquisa minuciosa, numa biografia que mescla a relevância, os numerosos desafios e a ocasional leveza que caracterizam a vida de Sueli Carneiro, uma mulher que de fato chegou.
Casa de Maricota
No final da adolescência de Sueli, a família mudou-se para a rua Paula Ferreira, bem perto da Baltazar Silveira, ainda na Vila Bonilha. Era, de novo, o endereço mais feio da rua, o mais degradado. Eva compensava a feiura cultivando plantas na fachada, especialmente boldo e flores. Era uma casa alegre, sempre cheia de gente.
As tranças que a mãe e as tias faziam nas meninas já não agradavam mais Sueli, que começou a alisar o cabelo com um pente de ferro, à beira do fogão, ao modo das mulheres mais velhas da família. Não caprichava muito, fazia o mínimo. Nunca teve a vaidade das filhas de Oxum ou de Iansã — mais tarde se descobriria filha de Ogum.
Nesse período, experimentou uma negritude saborosa, efervescente, a léguas daquela prezada em sua casa. E isso foi graças a Maricota, uma mulher que levava uma vida que os pais de Sueli viam com maus olhos. Para Eva, era um pesadelo suas filhas frequentarem a casa de uma mulher como aquela. Maricota era funcionária pública — trabalhava num posto de saúde —, mas fazia o que estivesse ao seu alcance para aumentar a renda, inclusive programas com homens. Criara sozinha as duas filhas.
Quando Sueli começou a visitar aquela casa, a filha mais velha de Maricota era sustentada por dois ou três homens que moravam por perto. A adolescente ainda não conhecia a expressão “garota de programa”, mas, quando a ouviu pela primeira vez, lembrou da primogênita de Maricota. Já a mais nova era a virgem da família. E tinha toda uma mística em torno da sua virgindade, de poupá-la e preservá-la.
Conhecer aquela mulher foi uma grande descoberta para Sueli. Maricota e as filhas eram da escola de samba Camisa Verde e Branco, uma das mais tradicionais de São Paulo. Desde o começo do século XX, aquela era uma agremiação de sociabilidade, resistência e afirmação cultural de negras e negros. E Maricota recebia muitas mulheres da Camisa e de outras escolas de samba, mulheres brilhantes como ela. Circulavam por lá compositores, o povo de candomblé. Gente negra que bebia, dava risada, fazia festa. Clima de churrasco na laje. Tudo o que não existia na casa dos Carneiro, pautada por um puritanismo de fachada. Mãe e pai alcoólatras se sentiam superiores àquelas mulheres que diziam ser “de vida fácil”.
Eva e José Horácio prezavam as aparências acima de todas as coisas. Viviam um inferno dentro de casa, ele a espancava e mesmo assim a família deveria exalar virtude. Maricota, suas filhas e todo aquele entorno que a cercava tinham um grau de autenticidade que Sueli aspirava encontrar. Até hoje, mesmo corinthiana e torcedora da escola de samba Vai-Vai, ela tem um carinho especial pela Camisa, em homenagem a Maricota.
Sueli passou muitos domingos lá, no meio da negrada festeira. Era sambar, comer e, quem quisesse, beber. Numa formação governada por mulher preta, sem homem mandando. Aquela casa devia ser mais ou menos como havia sido a casa da matriarca e mãe de santo Tia Ciata, personagem fundamental para o samba carioca da virada do século XIX para o XX.
Maricota e as filhas conheciam e admiravam a família Carneiro, porque o povo considerado derrubado tem muito respeito pelo da aparência. Aquela imagem de família negra distinta convocava Maricota e as filhas a proteger Sueli. De certa maneira, ela era a segunda virgem daquela casa.
Sem perspectiva
Certa noite, já bem tarde, José Horácio voltava para casa quando viu um garoto na rua, dormindo dentro de um tubo grande de concreto, daqueles que depois são enterrados para escoar água da chuva e esgoto. Era o Bola, um amigo de Sueli e Geraldo, um garoto inteligente e talentoso, simpático e estudioso, que havia saído da casa da família branca que o adotara por não aceitar o lugar de inferioridade a que o submetiam. Era impensável deixar um amigo da família — Eva gostava muito dele — dormir na rua, e ele levou o garoto para casa. Sempre cabia mais um, mesmo que não coubesse. Bola morou com os Carneiro por alguns anos, até casar e perder contato com a família.
Não era incomum meninos negros ficarem soltos, morando de favor de casa em casa. José Correia Leite, da Frente Negra Brasileira, já contava que no início do século XX a mãe o deixava cada hora num canto para poder trabalhar. Com fome, frio e sem orientação, passava noites na rua ou era abrigado em casas de famílias negras.
Sueli começou a ter alguns namoricos de portão. Uma vez, lá pelos seus dezesseis anos, ela voltou para casa acompanhada de um rapazinho e os dois ficaram na entrada, conversando um pouco. A garota se deu conta de que toda a família estava espiando pela janela, escondida, à espera do beijo. Que não veio: ela se despediu normalmente e entrou, para decepção da plateia.
Os irmãos mais novos gostavam de um amor platônico de Sueli. Treze anos mais velho que ela, Santista era muito bonito, negro, verdadeiro príncipe encantado. Para completar, o Alfa Romeo que ele tinha (um baita carrão, à época) fazia as vezes de cavalo branco. Homem-feito, Santista nunca foi inadequado com a menina que sonhava ser olhada por ele quando fosse maior. O príncipe gostava de conversar com a garota inteligente e dizia que ela era delicada como uma lixa zero. Na versão de Solange, sua irmã, a distância entre o cérebro e a língua era muito curta.
A vida da adolescente se organizava em torno da escola: de manhã, aula; à tarde, lições de casa e a roupa de toda a família para lavar. No tempo livre, leituras. Uma rotina bem azeitada, até que o colegial terminou. Sem emprego nem dinheiro para fazer cursinho, ir ao cinema ou qualquer outro lazer, ela se viu sem horizonte dos dezessete aos vinte anos, mais ou menos. Ficou deprimida.
Foi então que fez um grande amigo. Paulo Silas já trabalhava fora do bairro, escrevia poesia, tinha acesso a muitas referências e era cheio de ideias diferentes. Por influência dele, Sueli deixou de lado os livros da Biblioteca das Moças e mergulhou em Jorge Amado, Guimarães Rosa, García Márquez, Machado de Assis. Paulo Silas era sua única certeza: se tudo desse errado, ainda assim ela teria sua amizade para sempre. Eram tão inseparáveis que os irmãos até achavam que namoravam. Não sabiam que ele era gay. Ou, se percebiam, se faziam de desentendidos, como era comum naquele tempo.
Concluir o colegial, para as classes populares, era uma vitória grande. Isso fica evidente no primeiro livro que Sueli Carneiro publicou em coautoria com Thereza Santos, em 1985, quando inauguraram os estudos brasileiros sobre desigualdades entre as mulheres. Nesse trabalho averiguaram que em torno de 50% das mulheres negras brasileiras tinham até um ano de estudo, em 1980. Ou seja, metade das mulheres negras brasileiras era praticamente analfabeta. Quase 90% delas só tinham quatro anos de escolarização, dado bem diferente dos 69,8% de mulheres brancas. Já nos níveis médios de instrução, de cinco a onze anos de escola, chegavam 13,6% de mulheres e homens negros; 25% de brancas e brancos. Completar o colegial, com onze anos de estudo, era mesmo algo para se comemorar. E depois da celebração, todos os amigos brancos foram se encaixando no mercado de trabalho e Sueli foi ficando para trás. Foi então que percebeu o racismo operando de forma explícita.
Um dos amigos de Sueli era motorista na Anderson Clayton — que fabricava a margarina Claybom, entre outros produtos — e a avisou que abrira uma vaga de secretária na empresa. Sueli e uma amiga branca que morava na frente da casa dela entraram no processo seletivo. Na redação, Sueli ficou em primeiro lugar. “Por escrito, não dava para perceber que eu era preta”, afirma. Já na entrevista, a menina branca foi selecionada e Sueli voltou para casa sem trabalho. Sentiu como um marco importante em sua percepção do racismo. Escreveu e falou muitas vezes sobre “a boa aparência” que excluía a mulher negra do mercado de trabalho.
Em 2002, durante a Conferência Nacional do Instituto Ethos, Sueli ministrou a palestra “Expectativas de ação das empresas para superar a discriminação racial”, na qual explicou como a chamada “boa aparência” tinha relação com os dados de escolarização, ocupação e salário que ainda hoje mantêm mulheres negras na base da hierarquia social.
Dentre as artimanhas do racismo brasileiro, a exigência de boa aparência presente nos anúncios de emprego traz como subtexto “Negros, não se apresentem’”. Pelo pequeno eufemismo da “boa aparência” e pela sutileza do “vaga já preenchida”, mantém-se a população negra em desvantagem no mercado formal de trabalho e, ao mesmo tempo, garantem-se os melhores empregos e salários para o grupo racialmente hegemônico.
Sueli Carneiro baseou suas conclusões na própria experiência e em inúmeras pesquisas produzidas pelos movimentos negro e feminista. Dispensando entrevista presencial, eram os concursos públicos que ofereciam para muitas mulheres negras escolarizadas a possibilidade de ingresso no mercado de trabalho.
- Continuo Preta: A Vida de Sueli Carneiro
- Bianca Santana
- Companhia das Letras
- 296 páginas
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