Trecho de Livro: Cada Um Carregue Sua Culpa — Gama Revista

Trecho de livro

Cada Um Carregue Sua Culpa

Por meio de relatos, a jornalista e documentarista italiana Francesca Mannocchi traça um retrato doloroso do pós-guerra iraquiano e das vítimas do Estado Islâmico

Leonardo Neiva 18 de Fevereiro de 2022

“Aliciavam as nossas crianças, os nossos meninos, diziam a eles como matar os Rawafed [para o Estado Islâmico, aqueles que renegam a religião verdadeira], usavam a religião como instrumento.” Com essas palavras se iniciam os dolorosos relatos que compõem o livro “Cada Um Carregue Sua Culpa” (Âyiné, 2022), da jornalista, escritora e documentarista italiana Francesca Mannocchi.

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Ela, que ao longo da carreira já cobriu guerras e a crise migratória em países como Síria, Tunísia, Iraque, Palestina, e Afeganistão, colheu depoimentos desde Mossul, no Iraque, até o campo de refugiados de al Jaddah, na Arábia Saudita, compondo por meio de pontos de vista multifacetados o panorama de devastação do pós-guerra iraquiano.

Apesar da inegável destruição que os conflitos e a ação do Estado Islâmico causaram, o livro fica longe do maniqueísmo, mostrando vítimas do grupo terrorista entre civis, mas também em meio às próprias fileiras, na forma de viúvas de milicianos, jovens terroristas e filhos de carrascos do EI que foram parar em campos de refugiados. O fio narrativo vai entremeando relatos pessoais e textos jornalísticos, ao mesmo tempo reconstituindo o contexto histórico do conflito e ajudando a dar solidez às dimensões da tragédia.

Muitas vezes difícil de ler, pela violência e tristeza de que é carregada, a obra usa essa pluralidade de vozes para traçar um importante retrato de uma guerra sem vencedores.


Abudi, doze anos, distrito de al Tanak, oeste de Mossul, primavera de 2017

Meu pai tinha uma oficina mecânica, de tempos em tempos eu o acompanhava, para ajudá-lo. Um dia, na praça da rua, a caminho da oficina, vi muita gente reunida observando alguma coisa. Integrantes do EI estavam degolando três homens.

Eu me lembro dos arrepios em todo o corpo. Corri até o serviço do meu pai. Disse a ele que tinha medo. Mas não chorei.

Isso acontecia direto, de repente. Enquanto as pessoas trabalhavam, nas oficinas, no comércio, acontecia de gente do EI levar alguém para fora, fazer os outros saírem das lojas vizinhas e matar o sujeito na frente de todos. Outras vezes nos obrigavam a caminhar até chegarmos a al Muwahid ou al Danma para assistir às execuções.

Quando degolavam as pessoas na minha frente, eu só queria ir para casa, mas mesmo quando eu voltava para casa aquela imagem não me abandonava nunca. Pensava e pensava e às vezes sonhava com aqueles homens sem cabeça. Eram pesadelos terríveis, eu acordava gritando aterrorizado. Tinha medo de que pudessem fazer aquilo também com meu pai, com meus irmãos. Comigo.

Eu tentava esquecer, mas acontecia de novo, toda hora. Na frente da mesquita do bairro, ou na coluna onde ficava a barraquinha de frutas.

Então papai me disse para não ir mais à oficina. E para deixá-lo trabalhar sozinho.

Ele me disse: «Fique em casa, com a sua mãe e os seus irmãos».

Antes do EI tínhamos tudo. Eu ia para a escola, papai ganhava bem na oficina e podíamos viver em paz. Abria a loja muito cedo de manhã e às vezes quando não havia escola eu ficava feliz em ajudá-lo. Fazia eu me sentir grande. Ficava feliz quando eu tinha de consertar as motocicletas. Pensava que quando crescesse eu pediria para que ele arranjasse uma boa para mim. Eu tinha brinquedos e um quarto só meu.

Na escola as letras do alfabeto passaram a ser usadas como exemplos para dar o nome das armas: P para projétil, H para howitzer

Antes da chegada do EI eu estava no quarto ano, o meu professor preferido era o Younes, e eu gostava também do diretor Qusai. Os meus melhores amigos eram Khaled, Muhammad, Ahmad e Youssef. Dividíamos tudo. Os brinquedos, o estudo.

Daí chegou o EI. E na escola as letras do alfabeto passaram a ser usadas como exemplos para dar o nome das armas: P para projétil, H para howitzer. Com a matemática era a mesma coisa, as adições eram a soma de armas. Pistola + pistola. Bala + bala. Em um dos textos que usavam para nos ensinar matemática estava escrito: «se uma criança explode a si mesma em meio a um grupo de vinte pessoas e morrem quinze, quantas pessoas restam vivas?». E daí nas escolas havia as crianças dos milicianos, os seus filhos, vestidos de soldados como os pais, e armados. Tentavam convencer as outras crianças a jurar fidelidade ao Califa.

Eu os vi inclusive darem choques elétricos nas pessoas para coagi-las a jurar fidelidade. Não havia escapatória, jurar fidelidade era obrigatório.

Eu vi aquelas crianças, as crianças deles, baterem nos velhos, cuspirem nos velhos, chamá-los de cachorros, de bichos.

Queriam mudar todo o mundo. Por que cortaram a barba? Por que usam as calças tão compridas? Por que não estão rezando? E chicoteavam, puniam, prendiam. E forçavam para que todos fossem às orações, à mesquita. Quem não ia à mesquita corria o risco de ser morto. Vi tudo com os meus olhos. Subiam nos andares mais altos das casas para jogar as pessoas lá de cima. Às vezes matavam as mulheres a pedradas.Certa vez, amarraram o corpo de um homem a um carro e o arrastaram pelas ruas na frente de todos.

Eu vi tudo, eu vi tudo.

As mulheres precisavam cobrir o rosto, usar o niqab e luvas pretas. Aquelas que não respeitavam as regras eram condenadas a ser chicoteadas na rua.

Uma vez, minha mãe e eu estávamos indo até a casa de uns parentes e eles nos pararam porque acharam que minha mãe não estava suficientemente coberta, então chegaram as mulheres do grupo al Khansa, a brigada da polícia feminina do EI, e arrastaram a minha mãe pela rua dizendo que ela seria chicoteada, fizeram os vizinhos saírem de suas casas e os obrigaram a olhar. Chicotearam minha mãe na rua, na frente de todos.

Mandaram-na sentar no chão e começaram a chicoteá-la nas costas. Se eu estivesse armado, eu as teria matado, sim, eu só pensava que queria matá-las por aquilo que estavam fazendo com a minha mãe.

E eu chorava, olhava a minha mãe enquanto ela era chicoteada nas costas, e chorava.

O EI é como um fogo que nos queimou. Eles arrasaram nossa vida. Tiraram-nos até a casa. Um dia eles chegaram e nos mandaram sair imediatamente, dizendo que aquela casa, a nossa casa, a partir daquele momento era deles. Por um tempo ficamos hospedados nos vizinhos, que nos ajudavam com um pouco de comida e as suas economias.

Todos os nossos bens, todos os nossos ganhos, a nossa casa, nós perdemos tudo por culpa deles. No início eles chegavam na oficina de papai e exigiam consertos, diziam que, se papai não trabalhasse para eles, colocariam fogo na loja. Então papai consertava os seus carros e as suas motos.

Eu posso descrever o que foi a guerra como uma casa que cai. A nossa vida, a nossa casa, tudo desabou em cima de nós

Depois começou a guerra e um dia eles foram na loja levando explosivos e dizendo que, se ele não trabalhasse preparando os carros-bomba, seria degolado. Papai não queria, não queria. Então aquele dia ele fechou a loja e nunca mais a abriu.

Eu posso descrever o que foi a guerra como uma casa que cai. A nossa vida, a nossa casa, tudo desabou em cima de nós, como os meus pesadelos à noite. Que me caíam na cabeça e não iam embora.

Bombardeavam e bombardeavam. Nós nos abrigamos nos vizinhos e a casa caiu inteira em cima de nós. Ficamos presos entre os escombros durante horas, não sei quantas, só sei que pensei que ia morrer ali. Até que algumas pessoas generosas nos libertaram, ajudaram-nos a sair dos escombros da casa dos vizinhos.

A guerra é a fome. Nos últimos tempos, antes de fugir, comíamos apenas grama. Estávamos cercados pelas bombas e comíamos grama. E até isso era caro. Um quilo de grama custava 10 mil dinares, e nós éramos obrigados a comê-la porque não havia outra comida, não havia nada. O EI havia levado todas as provisões para uma mesquita, para distribuí-las apenas às famílias dos seus apoiadores. Os filhos deles comiam e para nós só havia capim. Meu pai batia a cabeça na parede quando nós chorávamos de fome.

Eu nunca vou perdoá-los. Nem a eles nem aos seus filhos.

O EI usava a gente como escudo humano. Eles nos moviam de lugar. Uma vez nos pegaram, nós e os nossos vizinhos, estavam armados e nos obrigaram a caminhar na frente deles. Outras vezes forçaram os homens a combater, a disparar contra o exército. Quem não atirou foi executado.

Agora preciso trabalhar para ajudar a minha família a seguir em frente.

Devido à guerra, o meu pai ficou inválido, por causa da bomba que o atingiu na casa dos vizinhos. Não pode mais trabalhar. Portanto, não vou à escola, de manhã saio e fico esperando que alguém me dê um trabalho, assim podemos ter algum dinheiro para comer.

Ontem não tínhamos sequer mil dinares para comprar leite para o meu irmão menor, bati na porta dos vizinhos. Tenho vergonha quando bato para pedir dinheiro. Faz três dias que ninguém me dá trabalho, então faz dois dias que não comemos. Vivemos nesta casa, mas não é a nossa casa, nada é nosso. Na verdade não existe nada mesmo, pois não podemos comprar sequer um prato ou um copo. Dividimos a casa com outras duas famílias, dormimos sete em um quarto. O proprietário diz que se não pagarmos o aluguel teremos de ir embora, ele nos joga no meio da rua.

Se o meu pai pudesse trabalhar, eu voltaria à escola. Sinto falta dos meus amigos, da minha turma, tenho saudade das professoras e do diretor e do Youssef e do Muhammad. Muitos dos meus amigos foram mortos. Mas preciso trabalhar, então não penso nisso, penso às vezes de noite quando eu vou dormir. Mas muitas vezes estou cansado e então penso pouco.

Há dois dias os vizinhos aqui de perto prenderam um rapaz e chamaram a polícia, diziam que era um do EI. Os policiais o mataram na nossa frente, foi anteontem à noite. Uma parte de mim ficou feliz porque ele tinha sido morto, mas eu pensava que era como durante a guerra. Que tiram as pessoas de casa e as matam assim. Espero que Deus faça justiça e que, assim como eles mataram, possam ser mortos, tanto eles quanto suas famílias. Meu tio, meu primo, outro tio meu foram mortos junto com suas famílias. Que Deus possa puni-los e fazer com eles aquilo que fizeram conosco. Que sejam amaldiçoados, os adultos e os filhos deles.

Se ninguém me visse, se tivesse um revólver, eu mesmo os mataria

Ainda há muitos na região, eu os reconheço, sei quem são os filiados e os seus filhos. Eu os vejo caminhando, eu os vejo de carro. Eu os encontro enquanto saio para buscar trabalho. Eu olho para eles, mas agora são eles que baixam os olhos. Mas não mudaram, quem tem o mal dentro de si não pode mudar. Se ninguém me visse, se tivesse um revólver, eu mesmo os mataria.

Produto

  • Cada Um Carregue Sua Culpa
  • Francesca Mannocchi
  • Âyiné
  • 244 páginas

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