As Coisas Como Elas São — Uma iniciação ao budismo comum
O jornalista francês Hervé Clerc desconstrói visões fechadas ou mirabolantes para nos apresentar ao budismo em sua dimensão cotidiana
Em tempos de “The White Lotus” (2021-), o budismo está na moda. Ou ao menos é algo que diria Victoria, a popular personagem de Parker Posey na terceira temporada da série, que se passa na Tailândia. “Você pode se interessar por essas coisas, mas não fazer parte delas” foi precisamente o que ela disse à filha, que está interessada em passar um ano num templo budista. Mas o livro “As Coisas Como Elas São — Uma iniciação ao budismo comum” (Âyiné, 2025), do jornalista francês Hervé Clerc, traz algumas contradições importantes à fala da personagem.
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Para os fãs do escritor Emmanuel Carrère, Clerc é um amigo próximo e um dos principais responsáveis por apresentar a ele o budismo — podemos, portanto, agradecê-lo em grande parte pela existência de uma obra como “Ioga” (Alfaguara, 2023). Descrito como um livro que o jornalista carrega dentro de si há quatro décadas, “As Coisas como Elas São” não tem a pretensão de nos introduzir propriamente à doutrina dos seguidores de Buda. Em vez disso, Clerc desconstrói visões como a da personagem, nos guiando pela sua experiência pessoal — algo que traduz na expressão “budismo comum” do título.
Uma religião, uma filosofia, um sentimento, um modo de ver o mundo… Na obra, o autor se debate entre as várias definições, sem optar especificamente por uma. “Perguntei-me se ele seria efetivamente um ou outro, talvez um e outro, ou, então, o que é mais verossímil, nem um, nem outro, e se ele não poderia ficar sem nossos rótulos”, escreve no trecho que Gama selecionou abaixo. Para Clerc, por exemplo, o budismo significa o breve momento pós-Maio de 1968 — período de intensos protestos estudantis e trabalhistas iniciado na França —, um sentimento posterior ao fervor das manifestações que então, ainda jovem, ele não conseguiu colocar em palavras. É a partir dessa experiência original que o autor nos pega pela mão e nos apresenta de forma simples, sem jargões ou definições fechadas, à sua versão do budismo.
Sob os paralelepípedos, a praia
Uma pergunta ruim: o que é o budismo?
O budismo é geralmente considerado uma religião e, às vezes, uma filosofia. Enquanto escrevia este livro, perguntei-me se ele seria efetivamente um ou outro, talvez um e outro, ou, então, o que é mais verossímil, nem um, nem outro, e se ele não poderia ficar sem nossos rótulos.
A meditação budista nos ensina que a realidade está presente aqui mesmo, diante do nosso olhar, mas oculta atrás de um emaranhamento de pensamentos, representações, sentimentos, emoções, conceitos, que mais reveste e complica as coisas do que as ilumina. Meditar é retornar ao real; é, portanto, desimpedir.
Os sábios, conscientes de que “a metade vale mais que tudo” (Hesíodo), agem mais para suprimir do que para acrescentar. Eles buscam a realidade sob as representações, sob esses pesados paralelepípedos que chamamos de conceitos. Eu não sou um sábio, nem mesmo a metade de um, mas quis me inspirar em seus exemplos. Assim, refleti sobre minha pergunta: “o que é o budismo?”, e me perguntei, para desbravar o terreno, o que ele não era. O que seria necessário eliminar para encontrá-lo. E logo as coisas se esclareceram.
Buda e Sócrates
Na guerra contra o pensamento convencional que chamamos, convencionalmente, de filosofia, Sócrates é o grande estrategista. Ele mantém-se no centro do círculo como um lutador de sumô atarracado, baixo, flexível, pulando para a direita e para a esquerda, sem jamais estar onde se o espera, como Cassius Clay.
O budismo é geralmente considerado uma religião e, às vezes, uma filosofia
A filosofia não é seu trabalho. Ele não tem nenhum saber para monetizar: só sei que nada sei. Do terreno do não saber, o mais sólido de todos, ninguém o expulsa. Quem o surpreenderá no delito do saber? Quem lhe dirá: “Sócrates, você sabe, e você sabe perfeitamente que sabe e que eu sei que você sabe”? Um combate perdido de antemão.
É impossível estabelecer aqui uma comparação entre Sócrates e Buda, muito menos um julgamento de valor. Cada sábio é um continente, com sua flora, sua fauna, suas curiosidades. Porém, se o budismo é uma filosofia, como por vezes se afirma, Sócrates e o Buda devem ter mais pontos em comum do que diferenças. Uma breve análise nos mostra que não é assim.
Sócrates nasceu no ano de 470 antes da nossa era. Buda teria nascido em 480. Se essas datas são exatas, somente um decênio os separa. Sócrates morre em 399. Buda, talvez em 400. Ambos ensinam. Buda percorre a planície do Ganges escoltado por centenas ou milhares de discípulos. Um grande burburinho o acompanha. Sócrates não sai de Atenas, exceto por obrigações militares. Ele fala para auditórios restritos, para pessoas instruídas, na língua dos ferreiros, sapateiros, curtidores.
Um é filho de rei, o outro é filho de pedreiro. O homem da plebe ensina aos príncipes. O príncipe fala a qualquer um.
Sócrates quer fazer as pessoas despertarem. Buda também. Sócrates não para de importunar as pessoas adormecidas, os Meletos, Ânitos e Lícons, aquelas que não procuram, não questionam, não encontram. É por isso que elas sentem rancor por ele: porque foram despertas por nada. Os diálogos de Platão são aporéticos. Lendo-os, não sabemos o que é o bem, a piedade ou a felicidade “em si”.
Sócrates questiona. Ele não para de questionar. A filosofia, segundo ele, instala-se na precariedade do questionamento, como o poderoso demônio Eros que sopra nas brasas do pensamento. O filósofo é aquele que procura boas perguntas. Ele desconfia das respostas.
Buda não questiona. Não procura. Como Picasso, ele encontra. Envolve-se num processo interminável de descobertas ao qual dá o nome de nirvāṇa
Buda não questiona. Não procura. Como Picasso, ele encontra. Envolve-se num processo interminável de descobertas ao qual dá o nome de nirvāṇa. O nirvāṇa surge quando as buscas param. Buda não se importa com essa discussão de ideias que chamamos de dialética. Seu esplendor não tem palavras; ele é direto, tangível, assombroso, como um elefante na savana.
Quando o diálogo acaba, Sócrates segura seu interlocutor. Ele quer continuar a interação, alegra-se com o debate. Um budista, em contrapartida, não diz: “isto é verdade, isto é falso”. Não toma parte na controvérsia. E por que ele não discute? “Porque todas essas discussões não têm relação com o objetivo, com a vida nobre, porque não conduzem ao desencanto, à desilusão, à cessação, à tranquilidade, ao conhecimento profundo, à iluminação e ao nirvāṇa”, afirma Buda.
Sócrates desassossega. Buda acalma. Sócrates é o moscardo nos arredores da cidade. Buda ergue os dardos: “Ensino-lhes um caminho em que os espinhos são removidos” (Dhp 275).
Sócrates busca a falha do raciocínio e do raciocinador, seu ponto cego. Ele vira tudo “do avesso”. Acusam-no de corromper a juventude, de pôr os filhos contra os pais, contra o Estado, contra os deuses. Enquanto o carrasco, aquele homem que não cria obstáculos, traz-lhe a cicuta, Sócrates olha-o por baixo com aquele olhar de touro que lhe era habitual e que parece insinuar que, sim, há complicações em tudo até que se prove o contrário.
“Tudo nele é dissimulado, astuto, subterrâneo”, escreve Nietzsche (Crepúsculo dos ídolos). Sócrates usa uma máscara: “Ele passa seu tempo”, diz Alcibíades, “fazendo-se de ingênuo e de criança com os outros”. Buda nada esconde, nada dissimula. Não ironiza. Ele é imutável. Seu olhar é direto como o do elefante.
Sócrates pensa. Buda vê. Sócrates tende para a sabedoria. Buda não tende para nada. Não se inclina para nada, mantém-se no Meio, de olhos abertos
Sócrates disputa. A dialética é uma discussão. Porém, a última palavra, a palavra final, não lhe pertence. Buda tem a palavra final. Ele proclama o fim do mundo, aqui mesmo, neste corpo de 1,80m. A filosofia está no começo, ela é para iniciantes; filosofar é iniciar. Sócrates pensa. Buda vê. Sócrates tende para a sabedoria — definição do filósofo. Buda não tende para nada. Não se inclina para nada, mantém-se no Meio, de olhos abertos. O nirvāṇa, diz um texto, é “o estado sem inclinação”.

- As Coisas Como Elas São – Uma iniciação ao budismo comum
- Hervé Clerc (trad. Priscila Catão)
- Âyiné
- 244 páginas
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