‘A Obscena Senhora D’
Lançado originalmente em 1982, este clássico de Hilda Hilst (1930-2004), que faria 90 anos nesta semana, acaba de ganhar nova edição
Quem sou eu para te esquecer Menino Precioso, Luzidia Divinoide Cabeça? se nunca fazes parte do lixo que criaste, ah, dizem todos, está em tudo, no punhal, nas altas matemáticas, no escarro, na pia, nas criancinhas mortas, no plutônio, no actínio, na graça do teu impolho, no meu vão de escada, nesta palha, em Ehud morto. Ele está em ti, Ehud, agora que estás morto? como é o Menino Precioso dentro de Ehud morto? fervilha, tem muitas cores, pulula, Corpo de Deus em Ehud morto é difícil de ser visto pelo olho do vivo, cobrimos nosso rosto, volteamos, procuramos para as nossas narinas um tecido grosso, Ehud morto possuído de Deus é um todo de carne repulsiva, um esgarçoso de brilho e imundície, Ehud tuas unhas limpíssimas escovadas a cada dia, tua lisa mucosa, o ventre que cuidavas, as omoplatas retas, os pés de Ehud, longos, sóbrias as curvas das arcadas, os pequenos espaços do teu corpo de carne são do Todopoderoso agora propriedades, como estão, Ehud, teus pequenos espaços de carne? E teu esôfago, tua língua, e os pelos das tuas sobrancelhas eriçadas, e as pálpebras pálidas, e as mãos e as palmas? E o sexo, Ehud? se cuidasses um pouco do teu corpo, Hillé, andas curvada
o que é o corpo?
se caminhasses um pouco, por exemplo: duas vezes por dia subias e descias a pequena ladeira aqui da vila, respiravas lenta, um certo ritmo é bom quando se caminha, lembra como caminhávamos? te lembras de um brilho que vias numa pequena colina naquele passeio às águas? e como te esforçaste para subir a colina? e o que era afinal aquele brilho?
sim, me lembro, uma tampinha nova de garrafa, uma tampinha prateada como são todos os brilhos no cume de todas as colinas. exageros. a Terra não é uma tampinha prateada
como será a cara DELE hen? é só luz? uma gigantesca tampinha prateada? não há um vínculo entre ELE e nós? não dizem que é PAI? não fez um acordo conosco? fez, fez, é PAI, somos filhos. não é o PAI obrigado a cuidar da prole, a zelar ainda que a contragosto? é PAI relapso?
estavas suada. um vestido de ramas, azulado, onde é que foi parar aquele vestido? e um colar mínimo, de âmbar, perdeste? dizias: Ehud, vem, corre, brilha demais para não ser nada.
aí achei a tampinha
é. está bem. mas vamos esquecer, já mudaste a cara.
achei a tampinha e dei um grito, não foi, Ehud? e chorei esgoelada
foi. mas por favor vamos esquecer. fui falando mas não me lembrava do fim.
eu gritando que Deus era um menino louco e
vamos dormir, vem.
Um menino louco, vamos dormir vem, sim vamos dormir, como é o Tempo, Ehud, no buraco onde te encontras morto? como vive o Tempo aí? Escuro, e derepente centelhas de cores, como é o Tempo do inchado, do verme, do asqueroso? O que é asqueroso? Como é o Tempo no úmido do fosso? Pergunto ao Menino Louco: estás aí com Ehud? Morte, asqueroso, inchado, vermes, fosso fazem parte de Ti? Hillé, nada de mim é extensão em ti
Não fizemos um acordo?
O quê?
Não és Pai?
Nem sei de mim, como posso ser extensão num outro?
Não houve um contrato?
Quê? Estás louca. Vivo num vazio escuro, brinco com ossos, estou sujo sonolento num deserto, há o nada e o escuro
Não te escuto
Digo que durmo a maior parte do tempo, que estou sujo
O quê? O quê, meu Deus? Não te escuto
Que um dia talvez venha uma luz daí
Quê?
Hilda Hilst (1930-2004) foi escritora, poeta e dramaturga brasileira. Seu livro “A Obscena Senhora D” é reverenciado até hoje pela mistura de gêneros e prosa única
- A Obscena Senhora D
- Hilda Hilst
- Companhia das Letras
- 80 páginas
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