O futuro do Brasil é afroindígena? — Gama Revista
Ilustração: Isabela Durão. Fotos: Katie Maehler/Creative Commons

O futuro do Brasil é afroindígena?

Um dos eventos literários mais importantes do Nordeste, a Flica destaca as poéticas afroindígenas no bicentenário da Independência do Brasil na Bahia

Tereza Novaes 28 de Outubro de 2023

A Festa Literária de Cachoeira, a Flica, que é realizada na Bahia até este sábado (28), propõe um olhar sobre as poéticas afro-indígenas nos 200 anos da Independência da Bahia. Marcada pelo protagonismo popular, a luta pela independência do país na província da Bahia se arrastou por 17 meses, até o 2 de Julho de 1823, quando os portugueses que se mantinham leais à Metrópole capitularam.

“É preciso reconhecer e dar os devidos créditos à participação popular no processo de Independência, ela não foi construída pelos homens brancos de farda, mas por mulheres, marisqueiras, pescadores, indígenas, brasileiros e africanos no Brasil. Essa independência só aconteceu pelo engajamento do povo à causa”, destaca Mírian Sumica Reis, cocuradora da tenda Paraguaçu e professora de teoria da literatura da Unilab, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira.

É preciso reconhecer e dar os devidos créditos à participação popular no processo de Independência

Para Niotxarú Pataxó, mediador de uma das mesas do evento e coordenador de educação escolar indígena na Bahia, a temática é de extrema importância justamente por fazer essa reflexão, sobre a centralidade de indígenas e afro-brasileiros na independência. “Esse processo não se deu somente pela vanguarda daqueles que ocupavam os espaços de poder”, lembra. E destaca: “É inegável a participação dos povos indígenas no processo de independência do Brasil, mesmo porque os povos indígenas já estavam nesse processo de luta contra as invasões de outros países em nossas costas, havia muito tempo. Nesse processo de independência, essa luta só se acirrou.”

Cachoeira, Recôncavo

Na edição deste ano, uma das maiores festas literárias das regiões Norte e Nordeste revisita a história da Bahia onde tudo começou: Cachoeira, no Recôncavo Baiano, liderou o movimento contra a dominação colonial e seu papel foi tão decisivo na resistência contra os portugueses que, todos os anos, a sede do governo estadual é transferida para o município por um dia.

A escritora baiana Luciany Aparecida vê um enorme significado em fazer o lançamento de “Mata Doce” (Alfaguara), primeiro romance que ela assina com o próprio nome, durante a Flica. “Para mim, que venho de uma comunidade rural no sudoeste baiano, é bem importante que isso ocorra primeiro em Cachoeira, esse território que é um lugar de luta e resistência contra a ocupação. Nessa disputa sobre identidades nacionais, é uma cidade símbolo.”

Ao buscar essas raízes históricas da Bahia, o evento olha também para a constituição social e cultural do estado com a maior população negra e a segunda maior indígena do país. É um lugar de onde se pode apontar diretrizes e dificuldades do protagonismo dessas pessoas no futuro do Brasil, que, ao menos no campo cultural, vem valorizando a produção de artistas negros e indígenas.

Exposições em instituições como o Masp, o Museu de Arte de São Paulo, representação de peso na Bienal de Arte de SP, editoras especializadas em literatura afro-brasileira e a eleição de Ailton Krenak na ABL, a Academia Brasileira de Letras, são alguns exemplos dessa valorização. Os criadores negros e indígenas, porém, sempre existiram.

A literatura de autores negros não era vista não porque não existia; era invisibilizada nos grandes meios de divulgação e publicação

“Para começar a pensar nessa nova visibilidade da literatura brasileira, é preciso reconhecer o papel importante dos movimentos negros que se organizaram e criaram mecanismos de publicação de obras de autoria negra. É preciso destacar a importância, por exemplo, dos ‘Cadernos Negros’ para a divulgação e a promoção de uma literatura que não era vista não porque não existia, mas porque era propositadamente invisibilizada nos grandes meios de divulgação e de publicação”, explica a cocuradora da tenda Paraguaçu, a principal da Flica.

Voz ativa

Dentro dessa construção da literatura afro-brasileira, Mírian ressalta ainda o papel da superação de silenciamentos sucessivos ao longo do tempo e no que isso culminou. “Minha bisavó que veio de uma condição de escravizada não podia falar, mas que garantiu os meios para que a minha avó pudesse encontrar outras alternativas de expressão, para que a minha mãe pudesse um bocadinho mais, para que, hoje, ela possa ter uma filha que vai ecoar a voz da vida, da liberdade. E hoje há um compromisso ético com essas vozes, um compromisso de autoras e autores que estão reverberando, escrevendo, falando também de memórias ancestrais, que permanecem em um campo de disputa, de uma correlação justa de forças.”

Se eu existo é porque mulheres que foram sequestradas e escravizadas decidiram, um dia, acreditaram em alguma coisa

Percepção semelhante é compartilhada por Luciany Aparecida. “Independente do tempo presente nos oferecer possibilidades melhores ou piores, estamos todas trabalhando no desejo e na esperança. Se eu existo é porque mulheres que foram sequestradas e escravizadas decidiram, um dia, acreditaram em alguma coisa. A minha avó é uma professora alfabetizadora que nasceu no Brasil no começo do século 20 e, um dia, acreditou em ensinar as crianças. Estou honrando minhas ancestrais, todas essas mulheres que vieram antes de mim, trabalho na perspectiva de acreditar na vida e poder mostrar isso em Cachoeira é importante, também no sentido de que as pessoas negras possam se ver.”

O futuro dos jovens

Do ponto de vista da educação, fator primordial quando falamos sobre qual o futuro que queremos para o país, a festa abre espaço para jovens e crianças em duas tendas: a Geração Flica e a Fliquinha, dedicadas ao público jovem e ao infantil, respectivamente.

“A tenda da Fliquinha tem capacidade para 200 pessoas e há um rodízio, com um entra e sai de gente. Trabalhamos com agendamento e há muitas escolas, de muitas cidades. Nos quatro dias, Cachoeira realmente vive a Flica”, diz Duca Clara, curadora da Fliquinha.

Professora da rede estadual, Duca trabalha em comunidades quilombolas na região de Cachoeira, e é testemunha de como a Flica proporciona aos alunos algo que vai muito além do evento em si. “Todas as escolas, os estudantes, as pessoas das comunidades ficam ansiosas pela Flica”, conta Duca. Segundo ela, a festa repercute de forma até inesperada. “Em julho, durante um ciclo de palestras que fizemos, uma estudante da minha escola perguntou se havia interesse em expandir as atividades da Flica para as comunidades quilombolas. Na semana seguinte, quando eu voltei, os alunos já estavam organizando por conta própria uma feira literária, que acabou virando a abertura oficial da Flica.”

Oralidade

Ao montar as mesas da tenda Geração Flica, o curador Jocivaldo dos Anjos convidou jovens e indígenas para dar visibilidade ao fato de que a escrita não é apenas uma atividade de adultos. Mais que isso, ele também buscou em suas escolhas ressaltar um fator crucial nas culturas afro-brasileira e indígena. “No Brasil, só damos valor à grafia, o que não é escrito não é existente. E a oralidade nas culturas, especialmente indígena e negra, tem um peso muito grande.”

Olhar para o futuro envolve rever o passado, valorizar e reconhecer, no presente, quem injustamente foi deixado às sombras da história, e jamais esquecer que o processo de construção é contínuo e, muitas vezes, mais lento do que gostaríamos.

Essa independência inconclusa não está consolidada para os jovens negros da periferia, que são aliciados pelo tráfico, que estão na mira da bala

Niotxarú Pataxó recorda que os povos indígenas estavam contra os portugueses na independência do país para defender e marcar os seus territórios. “Havia uma expectativa de que, depois, esse território permaneceria na posse dessas populações, o que não aconteceu.”

“Essa independência ainda não é algo consolidado para o povo que lutou por ela”, concorda Mírian Sumica Reis. “Não é à toa, que precisamos continuar defendendo as cotas raciais e que precisamos ler e sentir em nós a dor do poema ‘A Noite Não Adormece nos Olhos das Mulheres’, da grande mestra Conceição Evaristo. Essa independência inconclusa não está consolidada para os jovens negros da periferia, para os jovens que são aliciados pelo tráfico, os jovens que estão na mira da bala. Essa construção de independência ainda é uma luta da contemporaneidade. É preciso reconhecer essa trajetória, o muito que a gente avançou, mas o muito que ainda temos por construir. Não podemos descansar”, finaliza.

Este conteúdo é parte da série “Gama na Flica 2023”, produzida com apoio do Governo do Estado da Bahia e das secretarias de Educação e Cultura, realizadores da Feira Literária Internacional de Cachoeira (BA)

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