Escritos de mulheres
Johanna Stein acompanha uma nova onda do mercado literário, focado na produção de mulheres, e inaugura livraria feminista, a Gato sem Rabo
Uma livraria aparentemente comum. Com estantes de madeira, livros de ficção, de ciências humanas, de artes e fotografia. Mas um leitor atento logo deve perceber que não há autores homens. Eles, que são maioria nas livrarias de maneira geral, ali estão fora do catálogo. A escolha da catarinense Johanna Stein para a sua livraria, que deve ser inaugurada em meados de maio, na região central de São Paulo, tem a ver com “uma tentativa de preencher uma lacuna histórica”, como ela diz a Gama.
O próprio nome do espaço, Gato sem Rabo, é emprestado de um ensaio da autora inglesa Virginia Woolf (1882-1941), “Um Teto Todo Seu” (1929), que faz alusão à presença meio desconfortável — ou tão esquisita quanto um gato sem rabo — das mulheres no meio intelectual e literário. Principalmente na época em que viveu Virginia.
Não que hoje esse quadro tenha mudado totalmente: mais de 70% dos livros impressos no Brasil entre 2005 e 2014 eram escritos por homens, como mostrou uma pesquisa coordenada por Regina Dalcastagnè, professora e pesquisadora da Universidade de Brasília. “Hoje não é mais o caso de dizer que as mulheres não escrevem [como se dizia no passado], a questão principal é a visibilidade”, disse a pesquisadora a Gama.
Daí a escolha de Johanna. “A proposta é ser uma livraria de escritos de mulheres. A gente quer colocar esses livros no centro do diálogo literário, da produção editorial”, diz. Nos últimos anos, de fato houve um maior interesse do público por livros com temática feminista e assinados por mulheres, seguindo a chamada quarta onda do movimento feminista.
Elas deram respaldo a um mercado em crise por meio de diferentes iniciativas, como o projeto Leia Mulheres. “A gente sabe que surfa um pouco essa nova onda do mercado editorial, esse movimento que demanda por escritos de mulheres, mulheres pretas, essas outras perspectivas que não as hegemônicas”, diz. O catálogo da livraria deve contar com cerca de 1500 títulos.
Um modelo de livraria
Johanna, 30, teve uma trajetória diferente da que escolheu seguir nesta fase da vida. Aos 14, topou com a chance de trabalhar como modelo, deslanchando numa carreira internacional e se tornando inclusive uma das embaixadoras da francesa Chanel — posto que ocupa até hoje ao lado de mulheres de diferentes profissões, não apenas modelos, no Brasil e no mundo. “Tive um pouco uma vida meio errante. Eu queria ser indepentente de todo jeito, quando tive a primeira oportunidade pulei nela com tudo. Conquistar essa independência foi muito importante como formação da minha personalidade. Tenho muito carinho pela moda”, diz.
Nesse meio tempo, se formou em artes visuais, o que fez com que ela começasse a rascunhar um catálogo de autoras mulheres. “Foi aí que entendi que seria interessante oferecer um espaço para que as pessoas pudessem se encontrar e arejar essas palavras escritas. Não bastava só ter as palavras escritas, mas essa dimensão da oralidade, dos encontros seria muito incrível.” Nascia o projeto da Gato sem Rabo. Além de duas livreiras, na equipe de Johanna está também Livia Debbane, que é gerente de projeto.
“A literatura tem a capacidade de nos fazer pensar em novas formas de existir. A importância disso na minha vida é central”, diz Johanna. Confira a seguir uma lista de livros (escritos por mulheres, é claro) indicados por ela.
10 dicas da livreira
Johanna Stein indica dez livros escritos mulheres que a marcaram nos últimos tempos.
“Argonautas”, Maggie Nelson (Grupo Autêntica, 2017)
“Uma abordagem radical sobre gênero, maternalidade queer, educação infantil e linguagem.”
“A Medida das Coisas”, Tacita Dean (IMS, 2013)
“Ela é uma artista inglesa conhecida por seus trabalhos com vídeo, mas seus textos são um exercício de elaboração e reflexão tão importante quanto as imagens em movimento.”
“Cartas para Minha Mãe”, Teresa Cárdenas (Pallas, 2010)
“É um relato emocionante pelo ponto de vista de uma menina preta cubana que com seu olhar ingênuo consegue encontrar pequenas belezas diante de uma dura realidade familiar.”
“Discoteca Selvagem”, da Cecilia Pavón (Jabuticaba, 2019)
“Ela é uma poeta argentina que tenho gostado muito. Escreve sobre coisas banais, imagens poderosas e pensamentos íntimos que, se fossem ditos em voz alta, trariam algum desconforto.”
“Mulher-bomba”, da Flávia Peret (Urutau, 2020)
“Poesia quente, elaborada com firmeza, já que estamos todas prestes a explodir…”
“O Som do Rugido da Onça”, Micheliny Verunschk (Companhia das Letras, 2021)
“O romance escrito pela historiadora pernambucana é uma ficção sobre a história real de duas crianças indígenas raptadas e levadas para a Alemanha no século 19, com um rigor incrível para a reprodução de relatos de origem indígena, como o mito de criação do mundo.”
“Roça Barroca”, Josely Vianna Baptista (SESI-SP editora, 2018)
“O que mais me encanta neste livro é perceber a expressão indígena como uma literatura universal. O trabalho de tradução de uma das línguas mais antigas do tupi-guarani, o Mbyá-Guarani, para o português é primoroso e nos permite entrar em contato com textos míticos sobre a criação do mundo.”
“Tipos de Perturbação”, Lydia Davis (Companhia das Letras, 2013)
“Ela é uma de minhas escritoras preferidas, conhecida por textos escritos em formas breves. Ela tem uma espécie de dom da concisão, pois consegue expressar o essencial em poucas palavras.”
“O Peso e a Graça”, Simone Weil (Chão da Feira, 2020)
“Weil foi uma pensadora e mística francesa do século 20. este livro, organizado postumamente, é composto por anotações soltas sobre o amor, o sentido do universo e a contradição, temas caros à ela.”
“Heimat – Ponderações de uma alemã sobre sua terra e história”, Nora Krug (Quadrinhos na Cia., 2019)
“É uma narrativa em quadrinhos que tem um caráter de caderno de anotações, com um trabalho fascinante de colagens com imagens de época e desenhos. Trata-se uma pesquisa profunda sobre os caminhos que sua família percorreu durante o obscuro século 20 na Alemanha e a culpa nacional que ecoa até os dias de hoje sobre o holocausto.”
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