Dez livros de 2024 sobre memórias (reais ou inventadas) — Gama Revista

Dez livros de 2024 sobre memórias (reais ou inventadas)

Autores como Chico Buarque, Annie Ernaux e Miranda July exploram as diferentes facetas do eu na lista de autoficções e autobiografias que marcaram este ano

Leonardo Neiva 27 de Dezembro de 2024
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    “Bambino a Roma”, de Chico Buarque (Companhia das Letras)

    Em seus 80 anos, o músico e escritor reimagina a infância passada nas ruas da capital italiana

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    Imagine um pequeno Chico Buarque, calças curtas, ainda um pouco incerto da vida mas curioso com o novo mundo que o cerca. O cenário: a Roma dos anos 1950, das ruas pelas quais o jovem Chico passeia trepado em sua bicicleta de pneus brancos, pedalando na mesma toada em que percorre suas vivências familiares e as lembranças da escola. Na verdade, não é preciso imaginar muita coisa, já que o autor de “Estorvo” (Companhia das Letras, 1991) faz o trabalho para nós em seu novo livro, “Bambino a Roma”, lançado nos 80 anos do artista. Como em algumas de suas canções, o músico vai entrelaçando aqui as lembranças dos três anos que viveu em terras romanas a um exercício ficcional, de forma que se torna impossível ao leitor, e talvez ao próprio autor, dissociar uma coisa da outra.

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    “A Viagem Inútil: Trans/escrita” (Fósforo)

    Obra traz um olhar da autora argentina Camila Sosa Villada sobre si mesma e sua existência como escritora e travesti

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    “Primeiro eu soube escrever e depois aprendi a ficar triste”, diz a atriz e escritora argentina Camila Sosa Villada em “A Viagem Inútil”. Em frases como essa, a autora de “O Parque das Irmãs Magníficas” (Tusquets, 2021) une a poética que caracteriza sua escrita a um estilo autobiográfico, no qual a história pessoal e a de sua formação artística se mesclam e se confundem. A obra, com tradução de Silvia Massimini Felix, resgata memórias marcantes da infância de Villada em Córdoba, numa reflexão sobre temas como literatura, escrita, família e pobreza. Com a leitura de autores como Marguerite Duras, Wislawa Szymborska e Carson McCullers como guia, ela também vai perfilando neste livro curto, mas potente, paralelos entre o ofício de escritora e a própria existência travesti.

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    “Mudar: Método”, de Édouard Louis (Todavia)

    O autor francês continua a saga de seu alter ego Eddy Bellegueule, ainda mais dividido entre a desilusão e o sucesso

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    Em “Mudar: Método“, o autor narra enfim o amadurecimento do jovem protagonista de “O Fim de Eddy” e “História da Violência” (Tusquets, 2018 e 2020), cuja história se funde cada vez mais à própria biografia de Louis. A nova obra acentua ainda o distanciamento de Eddy/Édouard em relação aos amigos e à família, conforme o personagem luta para deixar um doloroso passado para trás. Centrado numa ideia onipresente de metamorfose, o livro constrói uma trajetória ficcionalizada, mas não por isso menos verdadeira, de um jovem que parte de um passado de pobreza e violência rumo ao sucesso absoluto como escritor. Com tradução de Marília Scalzo, funciona tanto como um manifesto quanto uma confissão, que não perde de vista o que deixamos pelo caminho quando seguimos como rolos compressores em direção aos nossos objetivos.

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    “O Mito do Mito”, de Rita Lee (Globo Livros)

    Neste livro de ficção póstumo, a cantora-autora lida de forma irreverente com o papel de fã e ídola

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    Dedicada ao “eterno namorado” Roberto de Carvalho, aos filhos bichos e humanos, netos e também a todos os ídolos e fãs, essa ficção com toques autobiográficos acompanha Rita durante seguidas consultas a um misterioso psicanalista, que só atende seus clientes após o por do sol. Lee começou a escrever “O Mito do Mito” em 2005, mas só foi retomá-lo para valer cerca de uma década depois, quando o manuscrito ressurgiu durante uma arrumação doméstica. Prato cheio para os fãs, trata-se de uma nova forma de mergulhar na mente e nos devaneios da artista enquanto ela mistura sessões inventadas de psicanálise a preocupações e interesses bastante reais. Um presente póstumo que Lee resume no trecho: “Artista morto vale mais, tem uns que viram até mito.”

     

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    “Esquizofrenias Reunidas”, de Esmé Weijun Wang (Carambaia)

    Escritora norte-americana escancara sua luta em livro sobre desafios da convivência com transtornos mentais

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    Diagnosticada aos oito anos com transtorno esquizoafetivo do tipo bipolar, Wang aborda de forma corajosa os múltiplos significados de conviver com a doença nos 13 ensaios que compõem “Esquizofrenias Reunidas”, best-seller nos Estados Unidos. Ao narrar episódios em que acreditava não ter um rosto, sentia aranhas devorando seu cérebro ou visualizava todos os seus amigos como robôs, Wang se aprofunda na angústia de saber o que está acontecendo com você sem poder fazer muita coisa a respeito. O livro, traduzido por Camila Von Holdefer, serve tanto como guia para o leitor, incluindo um alto potencial de identificação com muitas das experiências narradas pela autora, quanto uma forma que Wang encontrou para lidar com os próprios desafios.

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    “Faca: reflexões sobre um atentado”, de Salman Rushdie (Companhia das Letras)

    Salman Rushdie relembra em livro o ataque que lhe tirou a visão, numa reflexão sobre vida, morte, amor e recomeços

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    Autor de clássicos polêmicos e adorados, como “Os Filhos da Meia-Noite” e “Os Versos Satânicos” (Companhia das Letras, 1981 e 1988), Rushdie levou 15 facadas na manhã do dia 12 de agosto de 2022. Após uma lenta e demorada recuperação, o crime de ódio acabou lhe tirando a visão do olho direito e a mobilidade em uma das mãos, mas não a vida. A ironia, que o autor faz questão de apontar logo no início de “Faca”, é que o ataque aconteceu em cima do palco onde estava prestes a dar uma palestra sobre a importância de garantir a segurança dos escritores. Mas o livro, que tem tradução de Cássio Arantes Leite e José Rubens Siqueira, não é apenas sobre o horror da violência. Trata também do amor encarnado na dedicação da esposa e filhos, e das contradições de uma humanidade que gera um homem capaz de cometer um crime terrível, mas também muitos dispostos a arriscar as próprias vidas para proteger um ilustre desconhecido.

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    “De Quatro”, de Miranda July (Amarcord)

    Romance da cultuada escritora e cineasta narra com humor a jornada de uma mulher para viver os próprios desejos

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    Quase uma década depois de se aventurar em seu primeiro romance, “O Primeiro Homem Mau” (Companhia das Letras, 2015), a multiartista lança o elogiado “De Quatro”, com tradução por aqui da poeta Bruna Beber. À primeira vista, é impossível não relacionar a protagonista da obra à própria July. Pouco antes do seu aniversário de 46 anos, uma artista relativamente conhecida se despede do marido e do filho, e deixa sua casa em Los Angeles para uma inspiradora viagem de carro rumo a Nova York. Mas, apenas 30 minutos depois de partir, ela sai da rodovia para se hospedar em um hotel de beira de estrada. Acima de tudo, essa história de despertar sexual, autodescoberta e busca da liberdade desperta um humor extremamente peculiar, recriando em muitos aspectos a vida amorosa, sexual e doméstica da mulher do século 21.

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    “Uma Mulher”, de Annie Ernaux (Fósforo)

    Livro da vencedora do Nobel parte do luto pela mãe para resgatar a história daquela que foi a mulher mais importante da sua vida

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    Pouco após a morte da mãe e todos os trâmites relacionados a ela, Annie Ernaux começou a escrever. Continuando sua jornada pela autossociobiografia, gênero que fundou e que ajudou a consagrá-la, a autora explica que, embora, para ela, a mãe não tenha história própria, já que sempre esteve ali, “Uma Mulher” busca retratar a mulher real, num registro familiar e social, mítico e histórico, literário mas também abaixo da literatura. Assim como em obras anteriores, Ernaux parte de uma linguagem aparentemente neutra e do estilo conciso mas pungente ao qual seus leitores já estão acostumados. O luto, porém, se infiltra de maneira irremediável, transformando a escrita ocasionalmente seca de Ernaux — aqui traduzida por Marília Garcia — numa avalanche de memórias pessoais por vezes alegres, por vezes profundamente dolorosas, mas nunca indiferentes.

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    “A Casa dos Significados Ocultos”, de RuPaul (Intrínseca)

    Artista revisita juventude numa exploração da sua trajetória como uma das drags mais famosas do mundo

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    RuPaul destrincha desde a infância como uma criança negra e queer vivendo na cidade de San Diego até a construção de uma identidade própria nas cenas punk e drag em Atlanta e Nova York nas página de “A Casa dos Significados Ocultos”, com tradução de Helen Pandolfi. Além de ser um dos principais ícones drag e LGBTQIA+ do mundo e de estar à frente de um dos maiores reality shows da atualidade, RuPaul se tornou o primeiro artista negro a receber 12 prêmios Emmy, com a franquia de realities que inclusive ganhou versão brasileira. Contrapondo a família com a qual o autor cresce e aquela que vai escolhendo ao longo da vida, a obra celebra em cada página as características que nos tornam quem somos, num dos livros mais íntimos e reveladores de RuPaul.

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    “Um Romance Russo”, de Emmanuel Carrère (Alfaguara)

    Autor lida com os próprios fantasmas e prisões enquanto acompanha a história de um desaparecido de guerra

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    O francês Emmanuel Carrére faz da literatura uma forma de desnudar as próprias crises, enganos e dificuldades em “Um Romance Russo”, uma de suas obras mais reconhecidas. Publicada originalmente em 2007, a obra ficcionaliza uma passagem marcante da vida e carreira do autor: a viagem que fez à Rússia para relatar a vida de um prisioneiro húngaro, esquecido num hospital psiquiátrico desde a Segunda Guerra. Mas a obra, traduzida por André Telles, lida também com a estafa de Carrére em relação ao ofício de escritor e sua relação com uma nova mulher, que rapidamente começa a ruir devido ao ciúme e à fúria do próprio autor. Como em outros de seus melhores livros, Carrére desenha aqui o autorretrato de um homem numa busca incerta por redenção e paz.

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