A microagressão só é pequena para quem agride — Gama Revista
COLUNA

Winnie Bueno

A microagressão só é pequena para quem agride

Já refletiu hoje sobre quantas vezes você destruiu o dia de uma pessoa negra com seu comentário bem-intencionado, que nada mais é do que racismo disfarçado? Deveria

25 de Maio de 2022

Promover a diversidade tem sido uma política de performance nos grandes escritórios das grandes cidades. Um exemplo é o de vagas para pessoas negras, que exigem qualificações que não são exigidas para todos –e, logo, pode-se escolher o branco porque essa sempre foi a política do mercado de trabalho. Os sites especializados em ofertas de vagas ofertam oportunidades específicas para pessoas negras que são específicas até demais. Postos de trabalho que exigem fluência em três idiomas – e outras habilidades que não condizem com um país onde apenas 60% dos jovens negros concluem o ensino médio – resultam em contratantes que dizem, tranquilamente, que “até querem” promover uma maior diversidade racial, mas que infelizmente não conseguem.

Apesar da persistência da desigualdade racial é inegável que nos últimos anos, particularmente devido ao sucesso da política de cotas, cada vez mais pessoas negras têm conseguido ingressar em carreiras que outrora eram naturalizadas como destinadas aos brancos. Temos cada vez mais coordenadores, heads, líderes… Porém, o cotidiano dessas pessoas no mercado corporativo inclui lidar com a perversidade das microagressões raciais, que resultam em adoecimentos profundos.

É na escola que nos deparamos com as primeiras microagressões. Elas nos acompanham e crescem também conforme crescemos

Pessoas negras são submetidas às microagressões raciais desde a mais tenra idade. São racismos considerados sutilezas mas que geram traumas tão profundos que anos depois da primeira violência, geralmente expressa da forma passivo-agressividade que é comum à categoria, podem ser relatadas com riqueza de detalhes. Geralmente é na escola que nos deparamos com as primeiras formas de microagressões. Elas vão nos acompanhando e crescendo também conforme crescemos. Minha avó sempre conta uma história que exemplifica bem como a microagressão se expressa na vida de pessoas negras. Essa história ocorreu no interior do Rio Grande do Sul há mais de 60 anos e envolve a minha mãe. Apesar do contexto temporal e local, é uma história que tranquilamente poderia ocorrer em qualquer cidade do Brasil nos dias de hoje.

Minha mãe era uma aluna absolutamente aplicada, que gostava muito de estudar: era daquelas que chorava quando recebia um 9,5 numa tarefa escolar. Minha avó nunca recebia uma reclamação sequer da minha mãe, uma aluna-modelo. Mas a aluna-modelo também era uma jovem negra e, assim sendo, por mais modelo que fosse, não escaparia do racismo. O reconhecido brilhantismo escolar da minha mãe não a protegeu da violência racial. Nem ela, nem negro nenhum.

Ao ser questionado sobre a dificuldade de uma lição de matemática, um professor da minha mãe respondeu que “até a Sandrali conseguia resolver a questão”. Esse até machucou. Machucou não porque minha mãe era hipersensível, mas porque ela sabia o que esse até ocultava. A vó conta que minha mãe chegou em casa aos prantos e ao relatar o ocorrido ela sabia a razão do choro.

O que doía era que esse até ocultava que o professor de minha mãe considerava ela inferior aos outros estudantes porque ela era negra. O até escondia a invalidação. E isso acontece com frequência com pessoas negras no ambiente corporativo. Está em palavras que não são diretamente racistas, mas que carregam a profundidade dos discursos que legitimam e mantém as falácias da superioridade branca e que constituem os pactos narcísicos da branquitude. Está em ações não tão explícitas quanto a pessoa branca que atravessa a calçada quando o jovem negro vem na sua direção, mas que normalizam um tratamento diferenciado e prejudicial, que transforma a vida do profissional negro em angústias e ansiedades que parecem jamais ter fim.

Por mais que pessoas negras reconheçam o racismo em cada microagressão que se apresenta na vida delas, muitas vezes não sabemos e não encontramos formas de agir. Pois o racismo contido nas microagressões não é daquele tipo descrito no Código Penal. É difícil confrontá-las porque muitas vezes estão ocultas no mal entendido. A propósito, foi isso que o professor de minha mãe alegou quando minha avó foi à escola reclamar da violência que ela havia sido submetida: minha mãe entendeu mal, se equivocou.

Muitos profissionais negros quando sofrem situações como essa, quando são desqualificados sutilmente, quando ouvem que sua forma de se comunicar é muito agressiva ou quando percebem que a ideia aplaudida do branco é a mesma ideia de outro colega negro que foi descartada, são respondidos na chave do mal-entendido. A gente é que é incapaz de entender o racismo nas suas sutilezas. Muitas vezes os brancos ousam explicar o racismo que a gente não entende. Afinal, eles entendem de tudo: do que a gente passa e do que eles não passam.

As microagressões aparecem no mercado de trabalho quando você se impressiona com as habilidades de pessoas negras. Naquela surpresa pelo fato da pessoa negra se expressar bem em outro idioma. Aparece quando o diretor da empresa é negro e ao ser apresentado a partir do cargo que ocupa olhos saltados e “uaus” preenchem a sala. Ocorre quando percebemos que estamos trabalhando horas a mais porque passamos parte do nosso tempo dentro do escritório respondendo as dúvidas raciais dos nossos colegas brancos sem receber adicional por isso.

A promoção da diversidade não pode se resumir à oferta da vaga. Implica também em modificar as dinâmicas do ambiente de trabalho

Esses comportamentos racistas são naturalizados e normalizados pelas imagens de controle. Elas estão lá promovendo as ideias de que mulheres negras são demasiadamente bravas ou, em outros casos, tão passivas que se pode exigir delas, o tempo todo, pequenos favores – favores que são trabalho e que não estavam descritos quando a vaga foi ofertada. Vivenciar as microagressões constantemente gera traumas nada pequenos e que custam muito alto para as pessoas negras.

A promoção da diversidade, portanto, exige observar que a boa intenção em contratar mais profissionais negros não pode se resumir na oferta da vaga. Implica também em modificar as dinâmicas do ambiente de trabalho. Significa ofertar canais seguros para que as pessoas negras possam relatar seus desconfortos quando eles aparecerem e no momento que elas entenderem necessário fazê-lo. Prescinde em compreender que, a cada situação em que as microagressões aparecem, um sem fim de violências históricas dão as caras. É preciso entender que as pessoas negras estão cansadas de dar a outra face, estão cansadas de respirar fundo e seguir para uma nova rodada de comportamentos que não têm a intenção de ofender mas ofendem profundamente.

Você já refletiu hoje sobre quantas vezes, no seu dia, no trabalho, você destruiu o dia de uma pessoa negra com seu comentário bem-intencionado, que nada mais é do que racismo disfarçado? Deveria.

Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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