Coluna da Winnie Bueno: A branquitude defecou na democracia — Gama Revista
COLUNA

Winnie Bueno

A branquitude defecou na democracia

A violência a que assistimos em 8 de janeiro é resultado direto da supremacia branca tropical

12 de Janeiro de 2023

Eu sou uma pessoa muito impressionada com imagens. Das que acreditam piamente que elas sempre têm coisas importantes a nos dizer, a revelar. E as produzidas em Brasília nos últimos dias falam alto sobre como opera a supremacia branca e a branquitude. São mais didáticas do que qualquer livro, artigo ou podcast que explique esses conceitos, desde que analisadas com cuidado e olhar aguçado.

Assim como parte considerável da população brasileira, eu fiquei muito comovida com o cerimonial de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Me emocionou profundamente que Lula tenha subido a rampa ao lado daqueles e daquelas que representam tudo aquilo que foi odiado, rechaçado e desumanizado nos últimos seis anos. Falo seis anos, porque esse processo de ódio profundo às minorias, saindo às ruas sem pudor, dando as caras sem o menor constrangimento, não começou quando Jair Bolsonaro foi eleito. Ele ficou evidente quando este país não foi capaz de suportar a presença de uma mulher como chefe máxima da nação.

Vivemos em um país que odeia tudo aquilo que não é masculino e branco

O golpe que cessou o governo da presidenta Dilma Rousseff anunciava o que sempre soubemos, mas que, após a redemocratização, estava mais tímido: vivemos em um país que odeia tudo aquilo que não é masculino e branco. Um país que só aceita as mulheres se elas forem brancas e submissas ao patriarcado; que odeia negros e negras não importa quem eles sejam e o que estejam fazendo; que tem ojeriza da população LGBTQIA+; que se recusa a reconhecer os povos originários dessa terra e que faz todo e o possível para eliminá-los. O Brasil nasceu expropriando seu próprio povo, cresceu silenciando a rebeldia dos que lutam e vinha dando sinais de que amadurecia fomentado pelo medo, o ódio, a desesperança, apesar de serem muitos os que resistem a tudo isso.

Estes, que resistem, foram fundamentais para fazer cessar a continuidade de um projeto político genocida, excludente e segregatício. Uma agenda que destruiu sonhos, lares, famílias sem nenhum constrangimento. Nos últimos quatro anos convivemos com um presidente que, literalmente, ria da morte dos brasileiros. Que contribuía para impedir o avanço do genocídio das populações mais pobres, dos jovens negros, das mulheres, dos indígenas, da população LGBTQIA+, dos deficientes. Um presidente que vestiu a faixa do assassinato, da corrupção, do deixar morrer.

A maioria da população brasileira escolheu dar fim ao governo Bolsonaro. Escolheu um projeto que tinha a esperança como fio condutor. A maioria dos brasileiros escolheu um metalúrgico injustamente preso por mais de 500 dias, um homem de quem foi tirado o direito ao luto de seus próprios familiares, para, pela terceira vez, conduzir o Brasil a um lugar onde minimamente se possa dizer que se vive sob o manto do estado democrático de Direito.

Veja, quem me conhece sabe que tenho críticas bastante contundentes ao que efetivamente é o estado democrático de Direito e a forma com que ele funciona, mas eu não tenho nenhuma dúvida de que viver em uma democracia é melhor do que viver em um país que não respeita os fundamentos mais básicos da sua própria Constituição. Não há o que titubear, não há escolha difícil entre um homem que dedicou sua vida em prol da democracia e um filhote da ditadura. Um homem pequeno, incapaz de cumprir com as atribuições que lhe foram designadas quando, lamentavelmente, se tornou presidente e jamais apresentou nenhum compromisso com a população brasileira. Perdeu a eleição e não cumpriu um único rito democrático sequer porque não tem, como sabemos, nenhum apreço pela democracia, pela nação, pelos símbolos nacionais que ele e seus asseclas dizem respeitar. Tanto que, para além de não ter reconhecido a derrota, entregou o Palácio da Alvorada em situação precária, para não usar palavra pior.

Saiu aos choros e foi buscar conforto no colo de José Aldo. Não passou a faixa ao presidente Lula e com isso fez a única ação que vale a pena nomear em seus quatro anos de governo: permitiu que o povo brasileiro tomasse posse com o presidente que escolheu, no primeiro domingo de janeiro; às lágrimas, aqueles que representam a base que mantém esse país passaram a faixa para Lula. As emoções que esse ato nos proporcionou talvez tenham feito a gente baixar um pouquinho a guarda sobre o cenário que já estava posto desde o final do primeiro turno: o descontentamento violento de Bolsonaro e de seus apoiadores.

Na semana seguinte ao ato de posse — num domingo em que o presidente Lula fazia o que Bolsonaro raramente fez em seu governo, solidarizar-se com o povo de um munícipio em emergência –, centenas de bolsonaristas, comprovadamente financiados por empresários apoiadores de Bolsonaro ligados ao agronegócio, invadiram o Palácio do Planalto e o STF, destruíram obras de arte de inestimável valor para a história do nosso país, depredaram o patrimônio público e defecaram, sem metáfora, na democracia. Defecaram na democracia porque, na lógica supremacista branca, conforme li em um artigo do New York Times de autoria de Erin Aubry Kaplan, todos os símbolos e ideais democráticos são fortuitos e jamais serão mais importantes do que os direitos e os privilégios da branquitude ao poder.

Bolsonaro é líder da supremacia branca brasileira, representante e governante de uma cultura que já não é mais subterrânea

Quem conhece Brasília e as sedes dos poderes sabe que tudo o que aconteceu só foi possível porque houve anuência de quem deveria se responsabilizar pelo cuidado com a coisa pública. Cuidado este que o próprio Bolsonaro não teve, logo, nada mais óbvio que seus apoiadores tratassem o patrimônio público com descaso, violência e desprezo. A barbárie violenta a que assistimos no dia 8 de janeiro, uma semana depois da posse de Lula, inspirada nos ataques ao Capitólio ocorridos ano passado, é resultado direto da supremacia branca tropical, que inclusive almeja ser do mesmo tipo da estadunidense. Bolsonaro sempre se orgulhou de suas relações com Trump, assim como ajeitou a cama para que seus apoiadores atuassem como atuaram e, de forma semelhante ao seu herói, assistiu de longe enquanto seus seguidores tentavam golpear a democracia. Bolsonaro é mais do que um péssimo perdedor; ele é um corrupto golpista.

No que pese as instituições, os líderes internacionais e até mesmo o mercado, como sabiamente Flávia Oliveira demonstrou no último episódio do podcast “Angu de Grilo”, nos deixarem absolutamente tranquilos sobre não haver ameaça à democracia vigente em nosso país, não podemos observar tudo isso sem atentar que há sim um cenário antidemocrático produzido e fomentado por Bolsonaro e pelo bolsonarismo, que hoje já não depende de Jair para se manter. O bolsonarismo é maior do que o próprio Bolsonaro, que é minúsculo, como já mencionei aqui. A intolerância, a violência e a intransigência com que os bolsonaristas reagiram ao resultado eleitoral já era conhecida desde antes dele, não se resume a Brasília e se espalha fortemente nos interiores do Brasil, o que exigia uma atuação mais célere dos governadores, que ocorre apenas após o caos instaurado no último domingo. Bolsonaro é líder da supremacia branca brasileira, representante e governante de uma cultura que já não é mais subterrânea. Entender o que isso significa de forma profunda é urgente e necessário para que finalmente possamos combater os significados e as políticas que emanam dessa ideologia. Não é mais possível tratar a supremacia branca como algo isolado; ela é parte de um projeto de poder que só pode ser enfrentado com radicalidade e com a força daqueles que são comprometidos com a construção de uma sociedade pautada pela equidade e pela justiça social.

Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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