Coluna do Observatório da Branquitude: Escola e racismo — Gama Revista
COLUNA

Observatório da Branquitude

O peso positivo da raça branca na escolarização

Dois terços das escolas com 60% ou mais de alunos autodeclarados brancos concentravam-se nos mais altos níveis socioeconômicos, segundo Censo Escolar e Pnad 2019

21 de Dezembro de 2023

Eis que 2023 se aproxima do fim. Um ano intenso, sem dúvidas. Da nossa parte, findamos os 12 meses fortalecidos no compromisso radical com a democracia, com o combate ao racismo e às tecnologias de manutenção da branquitude. Desracializar o acesso aos direitos fundamentais e aos espaços de poder é a missão central entre nós. E não nos custa repetir: a branquitude, lugar de poder material e simbólico em favor do privilégio de pessoas brancas, não é natural, tampouco neutra.

Trata-se de uma ficção — muito bem consolidada — em torno da suposta legitimidade inerente à reserva sistemática dos melhores lugares sociais aos grupos brancos sob o signo da superioridade. Gera efeitos deletérios para a sociedade como um todo, uma vez que seu poder depende fundamentalmente da relação de subjugação de grupos não brancos. O que, somado aos marcadores de classe, gênero, território, entre outros, expropria a população negra do alcance dos bens da cidadania em razão do fenótipo.

O desafio de desracialização do acesso aos direitos fundamentais, isto é, da distribuição equitativa de direitos e do acesso a espaços de poder de modo a contemplar grupos não brancos, exige a compreensão de que o racismo é o elemento organizador das relações sociais no Brasil. Sem intencionalidade, sem políticas que encampem os critérios de raça e cor tendo a desracialização como premissa, nada escapará dele, do racismo. Apesar da suspeição de alguns em torno de afirmações como esta, lidas na chave da contundência e quiçá do extremismo, importa exemplificá-las com base em evidências científicas.

A participação de escolas de maioria negra nos estratos socioeconômicos mais altos era irrisória

Neste mês de dezembro, a plataforma Cedra divulgou um panorama inédito das desigualdades raciais na educação básica no Brasil a partir do Censo Escolar e da Pnad, ambos de 2019. Ao olhar para escolas predominantemente brancas, com 60% ou mais de alunos autodeclarados brancos, e para escolas predominantemente negras, com 60% ou mais de alunos autodeclarados negros, identificou-se que dois terços das escolas de maioria branca concentravam-se nos mais altos níveis socioeconômicos. A participação de escolas de maioria negra nos estratos socioeconômicos mais altos, por seu turno, era irrisória. De outra parte, percebe-se o inverso quando a leitura focaliza os níveis socioeconômicos mais baixos. Neles, a participação de escolas com 60% ou mais de alunado branco foi mínima, ao passo que a participação de escolas com maioria negra aglutinou-se em mais da metade destes níveis.

Vale ainda mobilizar outro dado a fim de desenhar o cenário sobre o qual queremos falar. Entre as escolas de educação básica com maioria de alunos brancos, 62,2% dos professores tinham formação adequada, isto é, docentes com curso de licenciatura completa na área da disciplina em que lecionavam, conforme o Cedra. Já em escolas com maioria de alunos negros, somente 33,2% dos professores tinham formação adequada.

Os dados são grandiloquentes. Escandalizam o peso positivo atribuído à raça branca na escolarização das novas gerações. As escolas com corpo docente melhor preparado para lecionar lidam, em maioria, com alunos brancos, de acordo com o panorama apresentado. E quanto maior é a concentração de estudantes autodeclarados brancos nos estabelecimentos escolares de educação básica, maior é o nível socioeconômico do corpo discente. Estas configurações sinalizam para uma inferência forte e excludente: escolas onde há mais brancas e brancos têm mais chances de sucesso, seja pela formação adequada dos professores, seja pela condição socioeconômica favorável à educação dos alunos. O fenótipo dos estudantes, portanto, é fator que beneficia trajetórias escolares qualificadas.

No Brasil que decidiu nas urnas lançar-se ao adensamento democrático em 2023, em que pese as disputas ideológicas e políticas em marcha, o Estado não pode dispensar das leituras caras aos estudos críticos da branquitude se desejar interferir de modo proposital nas assimetrias raciais em favor da luta por equidade. O hiato racial acima ilustrado demonstra a pertinência da desracialização na educação básica. Em outras palavras, a institucionalidade educacional precisa se atentar aos significados materiais e simbólicos intrínsecos à “naturalidade” de políticas públicas que, em prática, terminam por produzir mais escola para brancos e menos escola para negros.

Esta construção não está dada, pelo contrário. Parafraseando a pesquisadora de relações étnico-raciais Lia Vainer Schucman, se as instituições brasileiras funcionam bem, o resultado é o racismo. Não basta vontade política para a reversão deste panorama; é preciso, mais uma vez, intenção para a quebra de vantagens atribuídas a um grupo em favor da democratização de oportunidades. A educação tem muito a se beneficiar da valorização do aprofundamento da cultura de produção de dados, em especial de dados de raça/cor que ajudem, também, a revelar os expedientes insidiosos da branquitude. Com isso, será possível contribuir para subsidiar programas e políticas públicas assertivas, de correção de desigualdades raciais a partir da mirada sobre grupos brancos, a pretexto da distribuição equitativa de toda a sorte de recursos para garantir educação de qualidade a todas e todos.

O ano se encerra e com ele a certeza de que há muita estrada a percorrer na direção de conhecer os grupos que subiram a rampa naquela manhã de primeiro de janeiro último, tomando de empréstimo as palavras de Zara Figueiredo, professora e atual secretária da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi). Mas também há muito chão na tarefa de conhecer, nomear e desvelar os grupos raciais brancos, seus perfis e privilégios que insistem em acumular. Este é um dos papéis assumidos pelo Observatório da Branquitude. Desejamos um 2024 de diálogos e, sobretudo, de ações direcionadas ao tratamento das desigualdades com vistas ao futuro das novas gerações de brasileiros.

Carol Canegal é mestre e doutora em Ciências Sociais (PUC-Rio). Atuou como pesquisadora no Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd/UFJF) e analista de políticas públicas no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). Atualmente é coordenadora de pesquisas do Observatório da Branquitude.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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