Maria Ribeiro
Na minha Olimpíada ninguém mexe
Pelo direito a um mínimo de vazão do meu lado passional. Vai, Brasil!
Era só o que faltava. Em plenos jogos olímpicos de Paris, tevê ligada o dia inteiro, um país inteiro gritando de emoção, direita e esquerda chorando com a bandeira, velhos e crianças pulando de nervoso, ouvir gente questionando medalhas. Um dos maiores êxitos do status quo. Como se tudo — as lágrimas, os treinos, os sacrifícios — não existissem única e simplesmente em função daquele redentor pedaço de metal. Pelo amor de Deus! Do Deus daqui, do Deus da Grécia, do Deus de Guarulhos.
Ouro, prata, bronze, não importa. Medalhas são uma espécie de colo materno, pessoal. Um Carnaval fora de época, uma pequena janela de infância em meio aos prédios da Faria Lima ou aos ossos da meia-idade. É sério, é importante, faz diferença.
Deixa a gente ser feliz um pouco. Ver um pódio, uma pirueta, um salto impossível, uma passagem para Nárnia. Libera aí, pelo menos de quatro em quatro anos, o quarto perfeito — pai e mãe nos dando boa noite ao pé da cama —, uma vida justa, uma paixão correspondida, uma cura para o câncer, uma gentileza gratuita.
Ah, mas tem gente que perde. E o importante é competir. Oi? Jura? Numa boa, eu já perdi amores, amigos, casamentos, pai, e até minha coleção de miniaturas da Coca-Cola. Tenho uma estante inteira de derrotas e o projeto é abrir espaço para outras, de forma mansa e madura, que nem no poema da Elisabeth Bishop e na cartilha da minha analista. Tô fazendo tudo direitinho, caramba.
Medalhas são uma espécie de colo materno. Uma pequena janela de infância em meio aos prédios da Faria Lima
Mas aí vem um evento como uma Olimpíada, que me permite agir por alguns dias como uma criança de oito anos, e vem alguém problematizar o esquema da premiação? Nem vem, companheiro. Com todo o respeito. Vai tirar o doce da boca de outra garota.
Olha só: eu estou exausta de ser grande. De ouvir absurdos e ficar quieta porque, né, gente calma pega bem. Ser inteligente é tomar na cabeça em silêncio, aprendi isso em duas ou três situações inesquecíveis. Nada de reclamar ou acreditar em recompensa. O bom comportamento inclui sapos no estômago. Tudo certo, Maria. Você está aprendendo meio tarde, mas está aprendendo. Estrelinhas imaginárias desenhadas no seu travesseiro.
Mas, na minha Olimpíada, ninguém mexe. Tanta coisa pra mudar, poxa. Uma bíblia de reivindicações, das mais graves às mais frívolas. Do Congresso à camiseta cropped. A selvageria do esporte, não. Preciso ser primitiva. É questão de saúde mental, já que já reprimo muita coisa, muito ódio, muito ressentimento, muita euforia, muito orgulho, muita imaturidade, muitos sentimentos horríveis e maravilhosos. Pelo direito a um mínimo de vazão do meu lado passional. Nem que seja na minha casa.
Vai, Brasil!
Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.