Maria Homem
Loucura tem cura?
A cultura tem o poder de não nos deixar enlouquecer. Nos ajudar a segurar mais um pouco. Encontrar alguém que parece que nos escuta, ou que está falando com a gente
Ultimamente andamos repetindo frases do tipo: o mundo está louco. As pessoas andam por um triz. O mundo está derretendo, em crise, em ebulição.
Há umas semanas fiz uma live com uma personalidade singular do caldo cultural brasileiro chamada, maravilhosamente, Narcisa. Numa conversa frenética ela repetia a pergunta: Ai que loucura. Maria Homem, a loucura tem cura?
Essa é, de fato, uma das perguntas mais antigas da humanidade. Quem diz isso é o sociólogo inglês Andrew Scull, que publicou uma obra de vasto arco histórico: “A loucura na civilização” (Ed. Sesc). Ele amplia o recorte de Foucault e traça uma ‘história cultural da insanidade’, indo desde o rei Saul, da Bíblia e figuras de Homero, até os psicofármacos do século XXI, passando pela Idade Moderna e Freud. Vale cada capítulo de uma escrita envolvente que acaba por chegar exatamente a essa pergunta: afinal, sabemos o que é a loucura? E, mais, sabemos como curá-la? Ele tem a coragem de deixar em aberto.
Talvez, no fundo, ainda não tenhamos essas respostas. Embora cada época histórica crie suas teorias e práticas decorrentes. Assim, há milênios buscamos descrever a lourcura e já arriscamos várias hipóteses para suas causas: desde os espíritos malignos obsessores até os neurotransmissores ou outros componenentes de uma bioquímica também ela a nos dominar.
As leituras ‘psicodinâmicas’ parecem ser as mais operativas, relacionando o sofrimento psíquico à história de vida de uma pessoa e sua coletividade. Enlouquecer tem a ver com os tipos de laços sociais que estabelecemos – ou não – tanto os elos de intimidade, de família, quanto os de todos os grupos sociais aos quais pertencemos, e cuja herança carregamos, no xadrez peculiar de cada um. Na verdade, nenhum enlouquecimento pode ser dissociado da história de vida de uma pessoa. Da história que se conta e a que se recalca há algumas gerações.
Ter nossa história espelhada na história de pessoas que viveram antes de nós pode nos ajudar a suportar a dor de viver
Um homem, personalidade singular do caldo cultural argentino, talvez se faça essa mesma pergunta. Como faço para não enlouquecer? A gente sabe que algumas dores profundas podem nos tirar o juízo. Alguns abandonos, perdas, violências, excessos – aquilo que é demais para suportar em determinado momento de nossas vidas, e que por vezes chamamos de trauma. Diante da perda de um amor, podemos matar ou morrer. Diante da perda de um amigo, de um status, de uma fortuna.
Nosso personagem tinha um amigo, o melhor amigo de um homem, e foi muito difícil perder esse cachorro. Tanto, mas tanto, que se fez uso de estratégias para não perdê-lo. De um pedaço do clássico ‘objeto perdido’ se recriaram outros quatro. Ele conseguiu recriar o corpo, e mesmo corpos. Mas, e a alma? Essa é um pouco mais difícil de reproduzir. Mas aqui na fantasia psíquica a gente dá um jeito. E ultrapassa os limites que valem para o real, para as usuais leis da matéria.
Como? Revivendo imaginariamente a alma desse amor perdido e restabelecendo assim um elo com seu cachorro morto: Javi conversa com seu amigo. Com seu mentor. Seu espírito, do além, lhe dá conselhos.
Como então Javi escapa da dor de uma perda aparentemente insuportável? Criando a fantasia da continuidade da vida, num espiritismo interespécies. Inventamos uma história, uma narrativa, uma coisa qualquer que nos dê a tão sonhada ‘continuidade’. Isso é cultura.
Cultura é a continuidade de alguma coisa através do laço com o outro. Qualquer coisa e qualquer tipo de laço, por isso é sempre plural.
A cultura é aquilo que nos alimenta e faz nossa alma poder conversar com o outro, se nutrir de tudo aquilo que já pode ter morrido, já ter ido embora, nos abandonado, nos ultrapassado. Mas que de alguma forma está ali.
E continua a pulsar e a nos lembrar, por exemplo, que outros homens amaram e perderam seus amores. Ou não conseguiram amar e rodaram o mundo em busca de um amor, como “O Navio Fantasma”, ópera do Wagner da metade do século XIX que assisti no Municipal. O convite foi feito por quem ama música e fui acompanhada por um alemão wagneriano entendido do assunto. Ou seja, se sofro de amor – e sofro – ao menos encontro eco da velha busca com parceiros num sábado à noite. Sigo adiante em meu navio fantasma como o holandês e, assim, por ora não enlouqueço. Pois ter nossa história espelhada na história de pessoas que viveram antes de nós pode nos ajudar a suportar a dor de viver.
Esse o poder da cultura: não nos deixar enlouquecer. Nos ajudar a segurar mais um pouco. Encontrar alguém que parece que nos escuta, ou que está falando com a gente.
Ou partilhar a nossa história com alguém, o que muitas vezes nos salva da loucura. Isso é cultura. E psicanálise também. Poder contar como foi encontrar um urso numa floresta gelada e ousar olhar no fundo do olho dele, até ele precisar arrancar um pedaço da sua mandíbula para se afirmar em seu ser de urso. Essa a história de “Escute as Feras”, da antropóloga francesa Nastassja Martin. Na Flip do ano passado fiquei impactada por sua presença. Assim como agora ao ver a adaptação do livro feita por Fernanda Diamant e Mika Lins para o teatro.
Cachorros, livros, lives, ópera, música, feiras, pessoas – todos são canais a partir dos quais poder conectar com nossa humanidade.
A cura da loucura passa pelo outro. Talvez então, Narcisa, a resposta seja sim. A cura da loucura está na cultura. Em tudo o que consigo encostar e que, de alguma forma, vibra comigo.
Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.
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