Luara Calvi Anic
Minhas botas de artista
O dia em que entrevistei Eleonore Koch e saí da conversa com um par de botas usadas por ela em suas andanças pelo mundo
Nos anos 1950, quando São Paulo se achava a mais nova cidade cosmopolita das Américas, havia um bar ali embaixo do Copan chamado Bar do Museu. Um lugar perfeito para degustar um Campari com gelo num ambiente esfumaçado. É um desses lugares que fazem parte da história da cidade e que deveriam continuar de portas abertas, mesmo que aos mosquitos.
Por lá passaram inúmeros artistas, entre eles Alfredo Volpi (1896-1988) e Eleonore Koch (1926-2018). Eram mestre e aluna. A pintora de origem alemã frequentava seu ateliê aos sábados e, fora desse expediente, eles também curtiam momentos de amizade. Uma visita a uma exposição, uma passadinha na Bienal, uma esticada no bar em questão. Foi o que Koch me contou em uma entrevista nunca publicada que fiz com ela, em 2007.
Na foto, a artista em 1959, ano em que foi aceita na 5ª edição da Bienal Internacional de Arte de São Paulo Acervo pessoal Eleonore Koch
Desde sua morte, em 2018, Eleonore vem ocupando mais e mais o circuito das artes. Na época, um leilão com 188 lotes de desenhos e pinturas bateu recordes, dando sinais de que o reconhecimento (e as cifras) de seu trabalho estão em crescimento. Suas aparições mais recentes foram na 34ª Bienal (2020) e, ano passado, uma pintura sua passou a integrar a coleção do Masp. Este mês, o MAR, no Rio, inaugura uma exposição com 150 obras da pintora e, a partir de novembro, parte desse material poderá ser visto na galeria Almeida & Dale, em São Paulo.
Desde que foi se tornando mais conhecida, Lore – como é chamada pelos íntimos – carregou uma espécie de subtítulo: aluna de Volpi, discípula do pintor, única pupila do mestre. Foi com Volpi que ela escolheu utilizar a têmpera como técnica de pintura. O efeito é aquela cor opaca, que vemos nos objetos solitários que ocupam os quadros de Eleonore e também algumas criações de Volpi. Além da técnica, há um estilo que os aproxima.
Ela me contou, na visita que fiz a sua casa-ateliê, de uma conversa à mesa do Bar do Museu com Volpi e outros convivas. Papo vai papo vem e alguém diz ao notar que vestia a mesma gravata do colega: “Ah, então vou usá-la às segundas e quartas e você usa às terças e quintas”. Volpi interviu: “Não, não são gravatas iguais porque um está com a camisa branca e outro com a camisa azul”.
Obra em exposição no MAR – Museu de Arte do Rio. Sem título, 1985, têmpera sobre tela, 61×84 cm Acervo pessoal Eleonore Koch
Parece conversa de boteco, mas foi um papo complexo. Volpi fazia um comentário 100% coerente com as suas bandeiras como artista e com as suas bandeirinhas afinal. Basicamente o assunto da percepção cromática, de que você vê determinada cor a partir do entorno. Um vermelho é um vermelho quando reina sozinho. Mas quando está ao lado do verde esse vermelho é outro. Perceber as cores e formas do mundo e como elas se ajeitam era o trabalho de Volpi e também de Eleonore.
Uma bota diz muito sobre uma mulher que, nos anos 50, andou pelo mundo a partir das próprias escolhas
Ainda assim, essa ligação entre eles não define as influências e trajetórias de Koch. Antes de frequentar o ateliê do pintor, de 1953 a 1956 (ela tinha 27, e ele, 57 anos), ela já havia trabalhado na Livraria Nobel e depois da Livraria e Editora Kosmos, pontos de encontro de uma cena cultural da cidade; estudado pintura em Paris, quando conviveu com artistas e escritores como Lygia Clark, Paulo Emílio Salles Gomes, Jorge Amado, Rubem Braga, Portinari, nomes listados por Fernanda Pitta, curadora da exposição do MAR, na cronologia do ótimo livro “Lore Koch”(Cosac & Naify, 2013).
E é na volta desse período parisiense, no navio, que ela conhece quem a apresentaria a Volpi — o irmão do colecionador Theon Spanudis. Se não fosse todo esse espírito aventureiro dela, não haveria nem um vulto de Volpi em sua biografia. Uma mulher que nos anos 50 aproveitou o privilégio que tinha para fazer o que quis – Lore chegou no Brasil aos 10 anos fugindo do nazismo, era filha de uma conhecida psicanalista, Adelheid Koch, e de um advogado. Depois de Volpi, ela ainda morou em Londres, onde vendia suas pinturas a um colecionador exclusivo e, para fechar as contas, trabalhava também como tradutora oficial da Scotland Yard (!), a polícia inglesa.
As botas de Eleonore Koch foto: Luara Calvi Anic
Foi essa trajetória singular que me levou a querer entrevistá-la. Soube dessa história toda quando ela frequentava a Livraria Cultura, onde eu era vendedora do departamento de artes. Ela chegava com sua bengala e o Daniel Honorato, amigo e livreiro dela, puxava uma cadeira pra Lore sentar. Foi ele quem fez essa ponte entre nós duas alguns anos depois, quando eu já era uma jovem jornalista.
Koch não era de muito papo. É curioso saber que ela deixou sua herança para uma ong de gatos, sua cuidadora e para um segurança da rua que um dia a salvou. Ainda assim, tendo a pensar que ela foi com a minha cara: no final da entrevista, quebrou o protocolo e me presenteou com dois casacos de inverno e um par de botas de couro – peças já com uma cara vintage, afinal estavam com ela há mais de 4 décadas. Os casacos, muito volumosos, eu nunca usei e passei pra frente nas mudanças da vida. As botas, que eram menores do que meus pés e eu sabia disso quando aceitei, carrego até hoje. Sempre penso que uma bota diz muito sobre uma mulher como ela. Que andou pelo mundo a partir das próprias escolhas e alcançou algo que todo artista almeja: um estilo só seu e a possibilidade de perpassar gerações.
Luara Calvi Anic é jornalista, editora-chefe da Gama revista, onde coapresenta o Podcast da Semana. Foi livreira, editora de cultura e comportamento da ELLE e de outros títulos da Editora Abril, repórter da Trip/Tpm e colaborou com Folha de S.Paulo. Tem mestrado em ciências da comunicação pela ECA-USP
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