Coluna do Leandro Sarmatz: Elegância transgressiva — Gama Revista
COLUNA

Leandro Sarmatz

Elegância transgressiva

A adoção criativa e subversiva do estilo Ivy por parte dos negros dos EUA foi o pontapé inicial do streetwear, que tem hoje em Kanye West – vide a paleta de tons terrosos – um de seus líderes

21 de Fevereiro de 2022

Saiu há pouco no exterior uma joia em forma de livro: “Black Ivy: A Revolt in Style” (Reel Art Press, 2021). É nada menos que um portento. Trata-se do inventário, fartamente documentado, de um momento especial da história da cultura do século 20, quando artistas, músicos, escritores e ativistas negros subverteram a moda e a transformaram em instrumento de combate. Foi a partir do final dos 1950 e início dos 1960 que personalidades negras como Miles Davis, Sidney Poitier, Leroi Jones, James Baldwin e muitas outras mentes criativas e políticas do espectro afro-americano passaram a envergar – com mesmas doses de elegância e transgressão – o estilo clássico da elite branca do leste norte-americano, ou Ivy Style: blazer de veludo, camisa Oxford, calça chino, mocassins. O tipo de guarda-roupa que John Kennedy celebrizaria mundo afora em seus momentos menos presidenciais.

Jason Jules, o autor, mostra que até então o Ivy servia como um divisor social sutil mas ainda assim brutal naqueles tempos antes dos Direitos Civis. O branco que o usasse estava dizendo que havia frequentado Yale, Harvard ou outra das mais prestigiosas universidades norte-americanas – aquelas da chamada Ivy League, berço de presidentes, intelectuais prestigiosos e capitães da indústria – e que fazia parte, naturalmente e sem grande esforço, de uma elite. A vida lhe seria bem mais amena do que para a maioria de seus conterrâneos, especialmente aqueles de pele mais escura.

O Ivy, como todo estilo aspiracional, transportava seu usuário para fora dos guetos, dos cortiços e do ambiente opressivo de divisão racial

Aí vieram Miles, John Coltrane, Martin Luther King e outras personalidades negras que se apropriaram do estilo e o refundaram, fazendo com que milhões de afro-americanos, então considerados cidadãos de segunda classe, passassem a sentir mais orgulho de si mesmos. Claro: o Ivy, como todo estilo aspiracional, transportava seu usuário para fora dos guetos, dos cortiços e do ambiente opressivo de divisão racial até então vigente nos EUA, com seus infames lugares reservados para negros em ônibus e outros signos de segregação.

“Black Ivy” não fala, mas a adoção criativa e subversiva desse estilo por parte dos negros norte-americanos foi o pontapé inicial para a fecunda história da moda e do streetwear ao longo das décadas seguintes.

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Uma série documental sobre Kanye West acaba de estrear na Netflix. “Jeen-Yuhs”, filmada ao longo do últimos 20 anos – as duas décadas em que o polímata rapper norte-americano escalou os degraus da música, da moda e do egocentrismo –, mostra a evolução de um artista que começou como um bem-sucedido produtor de música dos outros até se tornar uma figura dominante na cena contemporânea. E apenas só da música.

A autoexposição aflitiva de Kanye West sugere algum distúrbio de personalidade, mas é inegável que a paleta contemporânea deve muito a ele

Fato é que a ubiquidade contemporânea de Kanye pode ser capaz de irritar muitas pessoas. Depois de ter se destacado nos estúdios de rap, ele se transformou nas últimas décadas em um potentado com ramificações em diversas e lucrativas indústrias: música, moda (haute-couture e streetwear), gastronomia, artes etc. Em sua trajetória abundam colaborações com Nike, Adidas, Virgil Abloh. Sua persona recente nas redes sociais tem algo de reprovável, com uma autoexposição aflitiva que sugere algum distúrbio de personalidade, mas é inegável que a paleta contemporânea deve muito a West.
Como num velho filme bíblico rodado na Cinecittà, Kanye é o homem dos tons terrosos. Sua grife Yeezy estabeleceu toda uma estética em nossa era ao reeditar cores como marrom, bege e uma infinidade (perfeitamente controlada) de tons lunares. Uma mistura de pureza, regressão e tardofuturismo em cortes folgados e confortáveis que parecem sob medida para um planeta em desajuste social e ambiental (mas não econômico: as peças de Yeezy alcançam facilmente algumas centenas de dólares nos EUA, alguns milhares de reais no Brasil). O fato é que todo mundo hoje usa essas cores terrosas – mais onipresentes que o millenial pink, o equivalente a diabetes no universo pantone –, mas alguns poucos anos antes de Yeezy consagrá-las elas estavam praticamente deixadas de lado. Nossa paisagem cromática, hoje, parece dever muito a elas.

(Eu pessoalmente tinha uma questão com tons marrons e congêneres. Como de costume, algo que remonta à infância. O fato é que quando eu tinha seis ou sete anos minha mãe encomendou na costureira um traje completo de veludo cotelê marrom. Para completar o look, uma camisa marrom claro de gola alta e um par de mocassins da mesma cor que calça e casaco. Como eu crescia pouco, devo ter comparecido nos dois anos seguintes a dezenas de aniversários e bar-mitzvás com esse traje. Ao fim desse período, abdicaria dessas cores pelos próximos 30 e poucos anos. Achava-as intragáveis, de mau-gosto, regressivas, prendendo-me a uma infância injusta em que os adultos ditavam a maneira que eu devia me vestir. Não é mais o caso.)

De certa forma, Kanye continua a tradição daqueles artistas pioneiros retratados em “Black Ivy”: é uma espécie de curador multicultural, com sensibilidade suficiente para se apropriar de uma penca de referências e produzir – da música popular aos tênis – algo robustamente criativo e muitas vezes desafiador.

Leandro Sarmatz é conhecido por seu senso estético apurado, que pode ser notado em seu guarda-roupa diário e na curadoria de imagens que eventualmente faz no Instagram. É autor de “Logocausto”, de poemas, e “Uma Fome”, de contos. É editor na Todavia

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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