Fernando Luna
Um celacanto encadernado
Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre uma livraria eterna, a vacina no bum bum tan tan, malucos de chapéu com chifre e os desejos mais que digitais
“Como eu fui feliz enquanto isso durou”
Dylan Thomas, 1936
Rio de Janeiro, gosto de você. Mas você podia retribuir um pouquinho.
Não bastasse a nova crise hídrica, a velha crise econômica dá a cotovelada fatal na livraria mais adorável da cidade. Parisienses têm a Shakespeare & Co. Nova-ioquinos, a Strand. Cariocas, a Timbre – por apenas uma última semana, e babau.
Um comunicado direto e reto, ironicamente divulgado pelas mesmas plataformas digitais que ajudaram a inviabilizar seu negócio, informou o encerramento de suas atividades no próximo domingo.
Foram 41 anos vendendo livros num país que não lê.
Pra uma livraria independente, isso equivale a escapar da extinção por duas ou três eras geológicas. Um celacanto encadernado.
Num espaço pequeno, a Timbre resolvia o desafio de existir 5,5 mil anos depois da invenção da escrita. Com milhões de títulos publicados de lá pra cá, escolhia com precisão aqueles que mereciam ocupar suas escassas prateleiras.
As duas vitrines estreitas são o melhor algoritmo de recomendação do mercado editorial brasileiro.
Seus fundadores, Kiki Machado e Aluísio Leite, sempre souberam o que é bom. Receberam José Saramago para autografar “Jangada de Pedra” dez anos antes da academia sueca sacar que ele merecia o Nobel.
Isolado pela pandemia, não vou conseguir me despedir pessoalmente. Pelo menos me senti representado pela derradeira visita de dois camaradas, que se acotovelavam comigo por lá no final dos anos 80.
(Incrível: o Poli entrou e saiu sem derrubar um único livro e o Ryff já não exibia sua cabeleira capaz de espanar as melhores capas.)
Encontrei aqui em casa “Poemas Reunidos”, de Dylan Thomas. Na primeira página, o selo de papel atesta em letras serifadas a boa procedência: “Livraria Timbre”. O verso de “Para Além dos Suspiros” dá o tom certo pra ocasião, com mais celebração que lamento – como fui feliz enquanto isso durou.
A Timbre nem vai acabar. Só vai mudar de endereço. Sai da Gávea para se instalar definitivamente nas estantes e nas memórias de milhares de leitores satisfeitos. Servir bem para servir sempre.
“Vai com o bum bum tam tam/ Vem com o bum bum tam tam”
MC Fioti, 2017
E daí que a vacina é no braço? O meme tem sempre razão.
De graça no SUS, até injeção na testa ou no bum bum tam tam. Respeitado o distanciamento social, tá liberado entrar na fila de vacinação fazendo quadradinho de oito.
Cinquenta e um países depois, o Brasil enfim começou a vacinar – em ritmo de funk, mas com jeito de transmissão carnavalesca. Mas a apuração, ao vivo e em rede nacional, veio antes do desfile.
Só faltou o Carlos Imperial na reunião da Anvisa.
(Diante da tragédia de 210 mil mortos e 8,5 milhões de infectados, 50,4% e 70,3% de eficácia merecem um dez, nota dez.)
Os técnicos da agência pareciam jurados avaliando os quesitos da Coronavac e da AstraZeneca, em meio a um governo que torce contra o carnaval ou qualquer alegria.
Com o aparelhamento da vigilância sanitária pelo presidente negacionista, muita gente temia o veto ao uso emergencial dos imunizantes ou a possibilidade do general-ministro pular na mesa e rasgar as notas técnicas.
Escapamos do vexame.
O órgão de estado agiu como órgão de estado, e não órgão de governo – mesmo com as pataquadas religiosas proferidas durante os votos. Ainda afirmou o óbvio, tão raro em pronunciamentos institucionais: não existe tratamento precoce pra covid.
(Sugestão: encher de cloroquina aquele avião que traria vacinas da Índia, mas acabou em Recife, e mandar direto pro Palácio do Planalto.)
Minutos depois das cinco horas de reunião em cadeia nacional, Mônica Calazans, enfermeira negra de 54 anos, foi vacinada. E, logo em seguida, Vanuzia Santos, indígena técnica em enfermagem de 50 anos. Duas representantes dos grupos com as maiores taxas de mortalidade da pandemia – e fora dela, também.
Se o seu coração peludo enxergou apenas o marketing da primeira dose, bem, ainda prefiro isso ao marketing da arminha na mão – capaz de zerar o imposto do revólver e aumentar o do oxigênio.
Então sobe o som e se joga nas aliterações calipígias dos versos de MC Fioti. Que, aliás, prometeu atualizar as rimas em seu novo clipe: “A vacina saliente/ Vai curar muita vida/ E salvar muita gente”.
“Atrasos têm consequências funestas”
William Shakespeare, 1592
Eu também invadiria o congresso nacional se a eleição tivesse sido roubada – apenas escolheria um figurino melhor pra ocasião.
Aposto que você faria o mesmo.
Por isso, a tomada do Capitólio nem foi o acontecimento mais assustador da semana passada. Pior foi descobrir que a turba de cosplay REALMENTE acreditava naquela farsa.
Apesar da contagem e recontagem de votos, tudo supervisionado por observadores republicanos, democratas e independentes, a legião trumpista vociferava: “Stop the steal”.
Tinham certeza de que defendiam a democracia.
O resumo dessa dissonância cognitiva é o viral da Elizabeth de Knoxville. Atônita, não escondeu seu espanto por receber dos policiais federais um spray de pimenta em vez de aplausos: “É uma revolução!”
(Saiu no lucro, por muito menos Black Lives Matter leva bala.)
Ela não vive sozinha nessa realidade paralela. Incríveis 72 milhões de norte-americanos juram que Joe Biden manipulou o pleito, de acordo com uma pesquisa da NBC e Change Research.
Leva tempo pra enganar tanta gente.
Esse exército de inocentes úteis vem sendo cevado há anos com fake news. A máquina do ódio digital junta o útil ao desagradável – as mentiras online rendem bilhões de dólares para as big tech.
(Existem várias propostas para regulamentar as grandes plataformas sem ferir a liberdade de expressão.)
Donald Trump precisou provocar uma insurreição para ser banido das redes sociais. Banimento é pouco. Free the nipple e cadeia ou impeachment pro presidente dos Estados Unidos.
Sem punição à altura, a extrema direita fica mais assanhada. Jair Bolsonaro até criou o golpe pré-datado, dizendo que sem voto impresso a confusão será pior em 2022.
Enquanto alguém redige outra nota de repúdio, o Véio da Havan encomenda seu chapéu peludo com chifres.
Passou da hora das instituições mostrarem que funcionam. As consequências funestas do atraso são tão extensas, que Shakespeare precisou escrever três peças pra dar conta do drama de “Henrique VI”.
A briga não é entre esquerda e direita, mas entre verdade e mentira. Make truth great again.
O que você deseja está debaixo da sua pele
Frank O’Hara, 1962
O feed do vizinho é sempre mais verde.
Mesmo escaldados em redes sociais e seus ilusionismos, volta e meia damos de desejar o post do próximo – aquela praia fotogênica, aquela cerveja na varanda, aquela família sem conflitos e com roupas combinando, aquele sorriso inquebrável.
Aberta a temporada oficial de metas de ano-novo, vale olhar menos pros lados e mais pra dentro.
O poeta norte-americano Frank O’Hara deu um toque amigo no chapa Bill Berkson: “O que você deseja está debaixo da sua pele”. E mesmo num poema curtinho, ainda repetiu pra não deixar dúvida: “Debaixo da sua pele”.
Entendeu?
Então aproveita. O início de ciclos no calendário tem efeito dopamina em nossa vontade. Entramos no embalo da renovação e rascunhamos listas para um novo começo pessoal.
Pra ficar no exemplo mais prosaico, em 1 de janeiro a busca pela palavra “dieta” aumenta 82% no Google, de acordo com um estudo da Universidade da Pensilvânia.
Claro que, salvo casos incrivelmente específicos, dieta não muda a vida de ninguém. O que muda costuma dar mais trabalho que fechar a boca e evitar fritura: descobrir, encarar e correr atrás do nosso pessoal, intransferível e obscuro objeto do desejo.
(Pelo menos até o meio do ano, quando quase todos já teremos desistido da empreitada, distraídos pelo corre nosso de cada dia.)
Não é fácil. Podia ser pior.
Imagina o desavisado que só queria começar o ano fazendo seus pedidos enquanto pulava sete ondinhas na Praia Grande?
Precavido, passou a noite da virada sossegado no seu canto, talvez com um ou outro familiar. Ficou firme até o último instante de dezembro, depois de dez meses besuntado de álcool em gel.
Evitou qualquer aglomeração noturna e adiou seu ritual saltitante pro dia seguinte. Não faria sentido desejar saúde-pra-dar-e-vender e se jogar numa festa de réveillon em plena pandemia.
Quando finalmente chegou à praia, sol no meio do céu, viu aquela cena e confirmou o que muita gente suspeitava: Jair Bolsonaro boia.
Limpa os cookies de 2020, o ano dois da pandemia já começou.
Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.