Nenhum homem é uma ilha (no Caribe) — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Nenhum homem é uma ilha (no Caribe)

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre paraísos tropicais & fiscais, beach tennis & pragas bíblicas, biblioteca & trio elétrico, Palácio do Jaburu & Afeganistão

04 de Outubro de 2021

Nenhum homem é uma ilha

John Donne, 1624
Antologia Profética

Tem homem que é logo um arquipélago inteiro.

Como as Ilhas Virgens Britânicas, conglomerado de quarenta e poucas ilhotas refesteladas no mar do Caribe. Um paraíso tropical e fiscal reservado às fortunas que preferem se esconder do olhar do povaréu – e do imposto de renda.

Ali, em vez de sofrer numa caderneta de poupança da Caixa Econômica Federal, curtem a valorização do dólar em empresas offshore. Dispensam o café frio oferecido pelo gerente e pedem logo aquele drink servido num abacaxi enfeitado com guarda-sol de papel.

Criticar é fácil, mas responda sinceramente: se você fosse o Paulo Guedes, deixaria seu dinheiro sob a responsabilidade do Paulo Guedes?

Eu, hein?

Concordo com o ministro da Economia, qualquer dinheiro fica mais seguro longe dele. Longe da inflação rimando com estagnação, longe do botijão de gás a 120 reais, longe dos mais de 14 milhões de brasileiros desempregados, longe da fila na porta dos açougues pra conseguir um osso capaz de engrossar a sopa e espantar a fome.

O presidente do Banco Central segue a mesma política monetária: Roberto Campos Neto também prefere seus caraminguás fora daqui. Esse governo só é nacionalista com o bolso dos outros. Brasil acima de tudo, rentabilidade acima de todos.

Não chega a ser surpresa que os empresários bolsonaristas Otávio Fakhoury e Marcos Bellizia, investigados no inquérito de fake news, rezem pela mesma cartilha. A dupla mantém seus investimentos no exterior, devidamente cercados de água por todos os lados, porque antiglobalismo tem limite.

Depois do vazamento dos Pandora Papers, destrinchados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, essa turma toda correu pra explicar que tá tudo certo, dentro da lei e sem conflito de interesses. A ver.

Até lá, fica com uma das “Meditações” do poeta inglês John Donne. Ele defende que “nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo”. E arremata: “Não pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. Um minuto de silêncio pelo país.


Toda segunda, o jornalista Fernando Luna (@fluna) apresenta sua “Antologia
Profética”, com versos desgraçadamente atuais.

Não há guarda-chuva contra o mundo

João Cabral de Melo Neto, 1945

O Brasil anda tão bagunçado que até as pragas bíblicas acontecem aleatoriamente por aqui.

Nem dá tempo da gente se preparar.

De repente, do nada, vem uma tempestade de poeira e engole meia dúzia de cidades em São Paulo e Minas. Olhando em retrospecto, aquele pessoal jogando beach tennis em Franca, a quase 500 quilômetros da praia, talvez fosse um sinal do que tava por vir.

Mas que sutileza é essa agora?

Cadê aquele deus fora da caixa e extravagante do Antigo Testamento, capaz de transformar as águas do rio Nilo em sangue, tudo em Technicolor e com direção do Cecil B. DeMille? Até nossa desgraça é de baixo orçamento.

Reconheço: pra fazer água virar sangue, precisa de água. Foi aí o Todo Poderoso vacilou. Caiu bem no meio da maior seca dos últimos anos, sem o insumo básico pro seu milagre às avessas. Nem onisciente dá pra adivinhar quando a Sabesp vai cortar o abastecimento.

Isso, claro, não justifica a ausência dos outros alertas divinos.

Nem sinal das infestações de sapos e, em seguida, mosquitos e moscas. O que, aliás, sempre me pareceu muito mais uma sequência darwiniana do que uma passagem bíblica: quando os sapos somem, os insetos aproveitam a ausência do seu predador natural. Não precisa ser o Magno Malta pra saber que logo mais chegam os gafanhotos.

Enfim, mesmo com a escuridão cobrindo o sol, negacionistas insistem que não há com o que se preocupar. Clima extremo não passa de um delírio dos globalistas e Greta Thunberg, uma cassandra a serviço da ONU.

Essa mistura (das pragas) do Brasil com o Egito ficou confusa mesmo.

O cortejo de horrores tava chegando na sequência certinha: Jair Bolsonaro, 01, 02, 03 e 04. Daí em diante, embaralhou tudo. O que veio antes? Prevent Senior ou Paulo Guedes? Marcelo Queiroga ou as motociatas? Destruição do estado ou pizza na calçada de Nova York?

“Não existe guarda-chuva contra o mundo”, escreve João Cabral de Melo Neto no poema “A Carlos Drummond de Andrade”. Existe, todavia, urna eletrônica. Até lá, vai chover poeira e vai sufocar. Palavra da salvação: fora, Bozo.

Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer

Caetano Veloso, 1967

Se você tem uma ideia incrível, é melhor fazer uma canção: Caetano Veloso teve mais uma ideia incrível e fez outra canção.

Mais especificamente, uma canção-ensaio.

Uso ensaio, aqui, não no sentido musical, de preparação pra apresentar decentemente uma composição. Falo daquela forma literária, relativamente breve e bastante pessoal, de examinar questões filosóficas, estéticas ou, francamente, qualquer coisa que dê na telha do autor – da morte em Montaigne ao bife com batatas fritas do Barthes.

A canção-ensaio é uma biblioteca se esgoelando atrás do trio elétrico.

Ela combina música e letra, muita letra, pra iluminar temas complexos.

Caetano já canto-falou sobre racismo (“Haiti”), geopolítica (“Fora da Ordem”), política (“Podres Poderes”), arte (“Estrangeiro”), gênero (“Eu Sou Neguinha?”) e linguagem (“Língua”), pra ficar em meia dúzia de exemplos.

“Anjos Tronchos” faz parte dessa playlist.

É o primeiro single do novo álbum, que já tem nome, “Meu Coco”, mas ainda não tem data de lançamento. Até o final do ano sai, tem que sair, pra inclinar pro lado do sim a balança deste 2021 tão negacionista.

O título da música retribui à piscadela do anjo torto que, quando Carlos Drummond de Andrade nasceu, disse: vai ser gauche na vida. Os anjos tronchos, porém, não vivem na sombra – vivem “no escuro em plena luz” das telas brilhantes e do ensolarado Vale do Silício.

Os mais de trinta versos (falei que tinha muita letra) rimam algoritmo com ritmo e trilhões com canções, numa narrativa poética sobre o choque de realidade entre a utopia e a distopia digitais.

De um lado, Primavera Árabe e Billie Eilish; de outro, Bolsonaro e Trump; no meio desse fogo cruzado, a gente.

Não é um canção pessimista.

Como “Coração Vagabundo”, primeira faixa de seu primeiro LP, “Domingo”, uma parceria com Gal Costa, a primeira faixa de seu novo álbum também não fica presa num chorar mais sem fim.

Mesmo que aquele vulto feliz de mulher tenha virado um nude e que seja impossível guardar o mundo na nuvem, nada de mimimi neoludista: meu coração não se cansa.

Embarquei na tua nau sem rumo

Michel Temer, 2012

Conteúdo sensível: esse verso pode apresentar conteúdo explícito ou violência – golpismo explícito ou violência contra a poesia.

Quando não conspira contra a democracia, seja articulando um impeachment sem nenhum crime de responsabilidade ou evitando um impeachment apesar dos vários crimes de responsabilidade, Michel Temer comete poemas.

Nos idos do primeiro madato de Dilma Rousseff, o então vice-presidente decorativo da República aproveitava pra versejar em guardanapos durante as horas mortas das viagens aéreas entre Brasília e São Paulo.

“Deixava a arena árida da política legislativa e me entregava, durante o voo, a pensamentos”, declarou, parnasiano aguado, na época do lançamento de seu livro “Anônima Intimidade” – um desastre literário que começa pelo título.

Se você não tem medo de avião, reconsidere: Temer pode estar poetando impunemente numa poltrona a poucas fileiras de distância.

Nem o 11 de Setembro foi capaz de criar procedimentos de segurança capazes de dar conta duma ameaça dessa magnitude. As tropas norte-americanas deviam ter invadido o Palácio do Jaburu em vez do Afeganistão.

Agora é tarde.

Só nos resta a exegese – talvez fosse melhor dizer exumação – do poema “Embarque”. Dizem que o problema do Brasil é a interpretação de texto. Mas, aqui, o texto claramente se impõe como problema central.

Embora faça questão de registrar no final da sua versalhada que “qualquer semelhança comigo ou com terceiros é mera coincidência”, Temer obviamente se referia à sua relação vampiresca com a então presidenta.

“Embarquei na tua nau sem rumo”, porém, traz um duplo sentido involuntário. Quem tá sem rumo, afinal? A nau? Ou o eu lírico, que, desentortando a frase, teria “embarcado sem rumo na tua nau”?

Semana passada ficou claro: era apenas um poema à frente de seu tempo.

Antecipava a escrita a quatro mãos em parceria com Jair Bolsonaro, na “Declaração à Nação”. Não é preciso ser crítico literário nem cientista político pra decifrar suas intenções: Temer desorientado embarcou na barca furada do bolsonarismo sem rumo.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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