Coluna do Fernando Luna: A melhor saída é sempre atravessar — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

A melhor saída é sempre atravessar

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre síndrome de dezembro, alegrias compartilhadas, férias sem descanso e certas coisas que podiam não ter sido – mas foram

11 de Dezembro de 2023

Robert Frost, 1914

Antologia Profética

Dezembro é uma imensa noite de domingo que dura 31 dias.

Aquela típica ansiedade dominical se esparrama pelo mês todo, música do “Fantástico” em loop na cabeça 24/7 anunciando simultaneamente o final de um ciclo e, talvez pior, o princípio de outro.

Como lidar?

“A melhor saída é atravessar”, escreveu o norte-americano Robert Frost no poema “Uma criada dos criados”. No longo monólogo em verso, uma mulher reflete sobre a angústia de estar sempre atarefada numa rotina sem redenção.

Ela lembra lá pelas tantas: “Trabalho não é tudo”. Aprisionada na própria vida, repete a platitude como quem tenta se convencer do que diz.

Parece intuir que, examinando com mais atenção a máquina do mundo, será capaz de encontrar em meio a suas engrenagens algum espaço pra amores, afetos, ócios e até “o sopro do vento em meu rosto e meu corpo”.

Quem nunca? A confusão entre o que fazemos pra viver e o que vivemos pra fazer só aumenta. Cada vez mais, a vida precisa se encaixar no job description – e não o contrário. Daí dezembro vira domingo e o Ano Novo, segunda-feira.

Entre o fim iminente e início inevitável, a sensação de que o tempo passou rápido demais, Natal taí, junto com a constatação concreta de que, nessa reta final, tá passando ainda mais rápido – e não vai dar pra fazer tudo que encasquetamos até o Réveillon.

Nem chegamos ao meio do mês e já viajei duas vezes a trabalho. Numa delas, atravessei os 450 quilômetros que separam São Paulo e Rio pra fazer uma reunião por vídeo com um carioca a dois quilômetros de onde eu tava.

E bora espremer a agenda pra caber tudo o que foi adiado: reuniões, encontros, e-mails, cafés, mensagens, dentista, drinks, médico, mudanças, conserto do carro, pintura da casa, viagem de férias.

Mais um ano ou menos um ano? O copo existencial tá meio cheio ou meio vazio? Calma. Logo janeiro chega com novos planos pra gente bagunçar.


Alegria que não é partilhada, ouvi dizer, morre jovem

Anne Sexton, 1975

Na entrada da festa, uma placa lutava pela privacidade dos convidados.

Propunha uma pausa humanitária no uso de telefones celulares: “Bem-vindos à nossa casa. A partir daqui, sem fotos”. Porém o aviso não dizia nada sobre crônicas.

Cheguei ao mesmo tempo que a Alcione e o Armínio Fraga, que me pareceu uma colisão de universos paralelos.

Fiquei me perguntando se a dama do samba e o trineto do Barão de Morenos já teriam se encontrado antes, se existiria outra interseção entre “Não Deixe o Samba Morrer” e o Banco Central, entre a Marrom e as verdinhas.

Ou se o ministro Luís Roberto Barroso já havia dividido uma pista de dança com Jojo Todynho, Belo e Gracyanne Barbosa. Ou se a Xuxa e o governador do Rio Grande do Sul já tinham encarado o mesmo bufê de madrugada. Ou se todo CEO era VIP ou se todo VIP era CEO.

O convite falava em família e amigos, não no multiverso numa casca de noz.

Fazer o quê se com seu “rizz” (cf. dicionário Oxford) a aniversariante passou os últimos 50 anos reunindo gente em torno dela, numa mistura de Fórum Econômico Mundial com vinheta de final de ano da Globo – e trilha sonora bem mais animada, um baile funk explodindo very important tímpanos.

Em volta, telões que não fariam feio em estádios, garçons materializando taças cheias, cumins desmaterializando pratos vazios e dançarinas girando em pole dances vertiginosos.

(Boatos sopravam que a Taylor Swift sairia do bolo pra cantar parabéns, mas o primeiro pedaço foi cortado sem derramar nenhuma gota de sangue – talvez uma ou outra lágrima na emoção do discurso.)

Famosos e anônimos desceram até o chão noite adentro, joint ventures calientes foram consumadas e a festa foi de fato uma festa – não um evento.

Alegria compartilhada, afinal. Porque, como Anne Sexton conclui em “Bem-vinda, manhã”, “Alegria que não é partilhada, ouvi dizer, morre jovem”. Só se foi quando o dia clareou.

Estar acordada é mais encantador que sonhar

Dionne Brand, 1990

Férias não são o momento certo pra descansar.

É uma questão de oportunidade: férias são a ocasião perfeita pra aproveitar as férias, o que só acontece se você estiver acordado.

Melhor descansar quando voltar à rotina, entre uma reunião e um e-mail, nas inevitáveis horas mortas ou, em casos extremos, nos finais de semana.

Seria um desperdício esbanjar o único período do ano em que se pode fazer de tudo um pouco, sem compromisso com a agenda, pra se dedicar a algo como dormir.

(Nem vem com turismo do sono. Se puder pagar 1.500 dólares de diária num quarto com colchão capaz de regular a temperatura corporal, o sujeito não deve ter nenhum motivo real pra perder o sono.)

Foi sorte a Dionne Brand, escritora de Trinidad e Tobago radicada no Canadá, lembrar disso logo no início da minha semana de férias em Paraty.

Numa das primeiras mesas da Flip, onde “Festa” vem antes de “Literária”, ela leu um poema de amor. Ou melhor, um poema de paixão, “Duro Contra a Alma”, cuja primeira parte termina assim: “Estar acordada é mais encantador que sonhar”.

Por isso, quando saí do auditório, em vez de voltar à pousada fui dar uma espiadinha no que tava acontecendo do outro lado do canal. Em vez de ir pro quarto depois de jantar, fui dar um confere na casa onde o zap dizia ter uma turma reunida. Em vez de considerar que tava bom por hoje, virei à esquerda numa passadinha rápida numa festinha. Em vez da passadinha rápida, acabei ficando porque apareceu uma caixa de som com bateria — um ponto de luz na cidade mergulhada num blecaute por conta da tempestade. Em vez de sair dali pra cama, segui o fluxo, na verdade uma meia dúzia de perdidos na noite, aglomerados em torno de um garrafão de cinco litros de cachaça de origem controversa. Em vez de ir embora, chega, deu, deixa só ouvir qual a próxima música que vai tocar.

Acabaram as férias, enfim vou descansar.

Essas coisas podiam não ter sido. Quase não foram

Jorge Luis Borges, 1972

Um argentino, uma swifter e uma policial de folga entram num bar. A vida não anda fácil e uma bebida pode ajudar.

– Uma água, por favor.

O barman ignora a garota e suas pulserinhas coloridas.

– Ei! Uma água, moço, tô derretendo nesse “Cruel Summer” antecipado.

Nada. Ela tenta outra língua.

– Water, water, water!

Ele aponta com o queixo uma fila que termina na boca do caixa, mas antes se estica porta afora por mais de dois quarteirões.

– Tem que comprar a ficha ali.

– Já fiquei horas plantada na fila virtual e dias acampada na fila da entrada pra pegar esse lugar. Não tem nem uma aguinha incluída nos 1000 reais do ingresso do show?

– Não. E o show foi cancelado.

A swifter se desespera, mas seu choro é abafado pelo pranto ainda mais estridente do hermano argentino.

– Un perro, un perro… Meu presidente é um animal!

A garota enxuga as lágrimas por um instante.

– Sei bem, já passei por isso… E foi durante a pandemia.

– Pelo menos o seu era un perro vivo. O meu é um cachorro morto dando ordens a um maluco que sai por aí com uma motosserra. Traz logo um fernet com Coca-Cola, camarero.

– São 7 mil pesos. Ou 2 dólares.

– Vou pagar com pesos, enquanto eles existem.

– Então agiliza, agora já são 7,5 mil pesos…

– Ei, pra ele você serve aqui e pra mim não?

– O cara perdeu o país, você só perdeu a apresentação dessa cantora que, na boa, nem é lá tudo isso.

– Agora você passou dos limites, retire o que disse.

– Vou ter dar água com Rivotril… A Dua Lipa é melhor que a Taylor Swift.

– Aaahhh!

A swifter pula a bancada de madeira enquanto mira o pescoço do barman.

Enforcado por meia dúzia de pulseiras da amizade, o funcionário pede socorro à policial de folga, alheia a tudo no canto do balcão. Sem tirar os óculos escuros nem descruzar os braços, ela desfere um pontapé:

– Sai daí seu tranqueira. O procedimento é ligar 190.

Borges tinha razão: essas coisas podiam não ter sido.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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