COLUNA

Círculo de Poemas

Um jeito de lidar com a vida

O coordenador do Círculo de Poemas, Tarso de Melo, analisa um poema de Donizete Galvão, que completaria setenta anos neste mês

12 de Agosto de 2025

O poeta Donizete Galvão nasceu na pequena Borda da Mata, no sul de Minas, em 24 de agosto de 1955. Completaria 70 anos em breve, não tivesse ido embora tão cedo, em janeiro de 2014. Logo ele, que nunca queria ir embora mais cedo. Se há alguma sorte depois dessas duras despedidas, é saber que todo amigo encontra uma maneira de continuar conosco: algo que nos ensinou, um jeito de lidar com a vida, uma bugiganga que colocou na nossa memória. Se “de tudo fica um pouco”, como disse outro mineiro, o que fica de alguém com quem dividimos as horas mais divertidas da vida? Fica muito. E se seu amigo era um grande poeta, fica ainda mais. A sorte é imensa, porque a conversa com ele não se encerra nunca. Segue em cada reencontro com as palavras que ele deixou. Na verdade, isso dói um pouco também, porque os poemas continuam falando conosco, falando coisas novas, coisas cada vez mais incríveis, e nossa vontade é correr para falar com… quem? Pois é, nada melhor, então, do que conversar sobre seus poemas com quem ama as palavras tanto quanto ele soube amá-las. Em 2023, tive a alegria de organizar, com Paulo Ferraz, a sua “Poesia Reunida” para o Círculo de Poemas. Para celebrar a poesia do Doni (é assim que ele nos atende), um dos seus poemas mais marcantes.

*

“Escoiceados”

Meu pai e eu
nunca subimos
num alazão
que galopasse
ao vento.
Tínhamos
um burro
cinza malhado:
o Ligeiro.
Foi apanhado
de um conhecido
por ninharia.
Chegou com fama
de sistemático,
cheio de refugos.
De trote tão curto
que dava dor
nas costelas.
De certa vez,
caímos do burro.
Meu pai e eu.
Eu e meu pai.
Embolados.
Joelhos esfolados
no pedregulho.
Levamos
bons coices.
Meu pai e eu.
Os dois
nunca subimos
na vida.

*

É impressionante como Donizete Galvão concretiza, na forma dos versos, as imagens centrais do poema, empilhando palavras de “trote curto” para desenhar o galope de um animal que não se confunde com um “alazão […] ao vento”. De um verso a outro, tudo é “sistemático”, com uma sintaxe que dá coices, que refuga, e vai se embolando até a queda: eu e meu pai, meu pai e eu, esfolados, embolados.

O Houaiss tem uma acepção próxima desse “sistemático” que ele foi pegar lá no interior de Minas: um indivíduo (e por que não um bicho?) “que, por adotar um sistema de vida por demais metódico, acaba por se diferenciar da coletividade, passando a ser visto como excêntrico, esquisito”. Mais ou menos isso, porque o “sistemático” do mineiro soa mais perto de “inflexível”, “teimoso” ou ainda “cabeça-dura”.

No ritmo desse burro cabeça-dura e esquivo, “cheio de refugos”, o poema e a vida vão passando e as tentativas de pai e filho para se equilibrar (“subir na vida” e lá ficar) resultam sempre em novas quedas, outros coices, joelhos esfolados. Nos primeiros versos, a má sorte, a triste sina: não ter um “alazão”; nos versos seguintes, a realidade como um coice: ter que se virar com “um burro/ cinza malhado”, que é Ligeiro apenas no nome, “apanhado/ de um conhecido/ por ninharia”.

Diante dessas duas gerações da família dividindo uma “ninharia”, sempre “caindo do cavalo”, se esfolando, é importante lembrar que uma imagem que sintetiza a poética do Doni é a da ruminação, que deu título a um de seus livros. Drummondianamente, o sujeito lírico rumina suas duas ou três questões, mas, para nossa sorte, ele sempre encontrou uma forma de tirar beleza dessa vida que lhe coube trotar.

Produto

  • Poesia Reunida
  • Donizete Galvão
  • Círculo de Poemas
  • 528 páginas

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Círculo de Poemas é a coleção de poesia e clube de assinatura da editora Fósforo, que lança duas publicações por mês de poetas das mais diferentes gerações, línguas e tendências. Todo mês, um poema da coleção é comentado pelo coordenador do Círculo, Tarso de Melo.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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