Círculo de Poemas
Nunca mais morder uma maçã vai ser igual
O coordenador do Círculo de Poemas, Tarso de Melo, analisa “Poema do Desaparecimento”, da carioca Laura Liuzzi
“Poema do Desaparecimento” é um poema de poemas. E é importante notar isso antes de entrar na sua teia. Os poetas encontram diversas formas para construir seus livros. Às vezes, os livros apenas reúnem os poemas escritos num determinado período (o tempo é o primeiro vínculo entre eles); outras vezes, os textos estão reunidos por um tema e, por isso, recolhem versos escritos em diferentes épocas.
Em outros casos, os poetas buscam uma coesão profunda entre os poemas que compõem o livro, até o ponto em que não podemos diferenciar o que chamamos de livro e de poemas; não conseguimos decidir se é um poema ou se são vários. Este, a meu ver, é o caso do livro de Laura Liuzzi, a despeito de indicar, já no título, que se trata de um “poema”. O leitor vai logo perceber que as páginas estão intimamente costuradas umas às outras, mas em sua boca vai ficar, a cada uma, um sabor único, inconfundível. Assim como há algo em comum entre todas as maçãs de uma cesta (e do mundo!), mas cada uma delas é única. E mais única ainda (se é possível dizer assim) é cada dentada em cada uma delas, não?
Dito isto, nossa conversa aqui vai girar em torno do primeiro poema (ou primeira parte ou primeira página) de “Poema do Desaparecimento”. É assim:
se percebo uma maçã
esta maçã me constitui:
o cabo levemente envergado
a pele vermelha cheia de sardas
sou eu a maçã agora que ela
entrou no meu mundo sou eu
vermelha arredondada pintada
é meu o seu interior amarelado
o suco que solta da carne esponjosa
as pequenas sementes escondidas
em suas costelas sou eu
a mesma que decide pegar
com as mãos a maçã
e sem descascá-la, feri-la
com os dentes, ferir-me
com os dentes e sentir
na língua sua carne
meu suco o som
de seu desaparecimento
a nossa frágil eternidade.
*
A abertura do “Poema do Desaparecimento” é coisa de cinema. É uma cena mesmo, no seu sentido mais complexo e mágico. No primeiro verso, há um “eu” oculto que se posiciona para começar a falar, mas é um “eu” cujo destino é desaparecer, o que fica mais evidente ainda à medida que avançamos na leitura. Um “eu” contido em “seu”.
Nos dois versos iniciais, aliás, há um jogo de espelhamento e troca de papéis que é fundamental: no primeiro, o “eu”, oculto em “percebo”, é seguido de “uma maçã”; no segundo, a maçã, “esta maçã”, é seguida do “eu” agora oculto em “me constitui”. Esquematicamente, é algo assim: eu > maçã / maçã > eu. Dá para dizer que, nesses dois versos, todo o movimento do poema (e do livro) aparece em versão concentrada.
Explorando as ambiguidades da cena em que “eu” e “maçã” se fundem, ou melhor, em que o “eu” desaparece sob a “maçã”, a descrição oscila entre o corpo da maçã (“cabo levemente envergado”, “interior amarelado”, “carne esponjosa”, “pequenas sementes”) e o corpo de que a voz do poema faz parte (“pele vermelha cheia de sardas”, “suas costelas”, as mãos, os dentes, a língua), até não reconhecer mais qualquer fronteira: “entrou no meu mundo sou eu/ vermelha arredondada pintada”. Ou ainda: “sua carne/ meu suco”.
Não é a maçã que desaparece a cada dentada, mas o contrário: quem morde desaparece na maçã
O ponto culminante da cena é uma dentada: “feri-la/ com os dentes, ferir-me/ com os dentes”. Feri-la é o mesmo que ferir-me. E não é a maçã que desaparece a cada dentada, mas o contrário: quem morde desaparece na maçã. Se observar a maçã é fazer com que ela passe a me constituir, mordê-la, então, é integrar-se à maçã. Entrar nela é o mesmo que fazer com que um de seus pedaços, abocanhado, entre em mim.
E o leitor de poesia não precisa ter receio de ouvir em “seu” uma espécie de contração de “sou eu”, porque um poema sobre dentadas é também um poema em que essa mastigação acontece nas sílabas: sua carne / meu suco / o som de seu / nossa. É possível ouvir a crepitação, o ruído do dente na maçã e o contrário. E já que falei de cinema no início, dá para imaginar o movimento dos versos aqui como a aproximação de uma câmera, captando detalhes, revelando e tocando a superfície, até que a própria imagem é engolida: “seu desaparecimento/ a nossa frágil eternidade”.
No poema de Liuzzi, sentimos o sabor de outras maçãs, como aquela do poema de Manuel Bandeira, em que “Palpita a vida prodigiosa/ Infinitamente”. Ou a “maçã enorme e vermelha”, em frente ao mar, em cujo brilho Sophia de Mello Breyner Andresen descobriu “a própria presença do real”. E não posso esquecer aquela maçã com que João Cabral de Melo Neto compara o rio Capibaribe em “O cão sem plumas”: “Espesso/ como uma maçã é espessa./ Como uma maçã/ é muito mais espessa/ se um homem a come/ do que se um homem a vê./ Como é ainda mais espessa/ se a fome a come./ Como é ainda muito mais espessa/ se não a pode comer/ a fome que a vê.”
Enfim, podemos levar todas as nossas maçãs para o poema de Liuzzi, misturá-las com sua maçã-eu, mas o fato é que nunca mais morder uma maçã vai ser igual.

- Poema do Desaparecimento
- Laura Liuzzi
- Círculo de Poemas
- 88 páginas
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Círculo de Poemas é a coleção de poesia e clube de assinatura da editora Fósforo, que lança duas publicações por mês de poetas das mais diferentes gerações, línguas e tendências. Todo mês, um poema da coleção é comentado pelo coordenador do Círculo, Tarso de Melo.
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