Coluna do Marcello Dantas: Há uma rachadura em tudo - é assim que a luz entra — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

Há uma rachadura em tudo – é assim que a luz entra

Ou nos tornamos ativos no processo de invenção de novos formatos que vão substituir o atual, ou deixaremos de ser agentes culturais para sermos enfeites culturais

20 de Julho de 2020

“There is a crack in everything.
That’s how the light gets in”

— Leonard Cohen, Anthem

Nos últimos meses nossas vidas foram interrompidas por uma espécie de muro, uma parede, que delimitou o fim de uma era e apontou que algo novo surgiria a seguir. Desde então, temos habitado dentro dessa parede — um lugar que não é nem lá, nem cá. Nossa existência passou a ser um processo de infiltração líquida gradual nesse bloco sólido. Mas como saber quando este processo se conclui? Quando a umidade de um lado aparece no outro.

Porém, esse outro lado só existe se o inventarmos. A mudança que precisamos é de paradigma. A criação vai se manifestar mais no jeito de fazer as coisas do que nas coisas em si. Desta vez, não vale mais mudar tudo para deixar igual. Posso falar com mais propriedade do ponto de vista da arte e da cultura, que são os territórios nos quais eu atuo.

Dada a forte dependência da arte contemporânea aos espaços físicos e às conexões pessoais, a quarentena apresenta uma disrupção inédita. Ela nos forçou a enfrentar uma série de realidades desconfortáveis e grandes questões relacionadas ao futuro da arte. Temos que exercitar os cérebros criativos da sociedade para pensar em como criar novos meios de expressão que contemplem as limitações e os potenciais inerentes a essa era. Se antes da pandemia a convergência entre arte e tecnologia era uma opção de linguagem para alguns, hoje em dia a união entre esses saberes tornou-se imperativa para todos e, principalmente, para a capacidade de renovação de ambos os territórios do conhecimento. Neste momento, eu consigo enxergar alguns campos de investigação com um futuro promissor.

O primeiro é a exploração do espaço público e natural além do ambiente cerrado de museus e galerias. As obras de arte inseridas no espaço urbano, sejam na forma de murais, esculturas, experiências em realidade aumentada como as realizadas pela Acute Art, intervenções, entre outras e novas linguagens ganharão um protagonismo inevitável. Podemos ocupar esse espaço e ele pede para ser ressignificado. Assim como a ocupação da paisagem natural em locais onde os fluxos humanos são baixos, mas a carga simbólica é alta. Existem tantos territórios onde a imaginação pode nos levar e os meios de distribuição digitais atuais tornaram o alcance infinitamente maior do que no passado. Existe este maravilhoso espaço onde as regras de distanciamento social não disturbam em nada a experiência.

Temos que exercitar os cérebros criativos para pensar em novos meios de expressão que contemplem as limitações e os potenciais dessa era

Vejo o segundo campo no aproveitamento do conteúdo cultural das grandes instituições de acervo e pesquisa, que podem ser transformados em conteúdo nativamente digital. O poder relacional dos bancos de dados e informações das instituições, sobre assuntos que podem ir da Biologia à Arqueologia, da História à Arte, é uma espécie de tesouro infinito no universo digital. Contudo, esse tesouro somente se manifestará quando existir a capacidade de relacionarmos o conteúdo trandisciplinarmente. Aí reside uma oportunidade gigante, tanto no âmbito do conhecimento quanto no econômico. A indexação e a inteligência interpretativa desse material adormecido nos acervos é um dos maiores ativos não explorados que possuímos. Uma espécie de Wikipédia, com assuntos muitas vezes inéditos, que não foram conectados porque as paredes feudais das instituições não se abrem para outros agentes.

Se de alguma forma pudéssemos gerar protocolos de colaboração entre museus e acervos com sistemas de inteligência artificial consolidados, poderíamos ter um renascimento desses conteúdos com distribuição digital e uma audiência global. Imagine o que o Google Earth fez pelo conhecimento de geografia aplicado ao patrimônio cultural mundial. Este conhecimento relacional não existe ainda, mas pode ser criado e ser uma fonte permanente de interesse, viabilização e preservação.

O terceiro, que começou a emergir, é o campo da arte como experiência e não como mercadoria. As novas linguagens imersivas têm produzido um resultado já marcante nos últimos anos e o público reconhece o valor dessas iniciativas. Neste formato, a produção desprende-se do sistema patriarcal baseado no colecionador/doador e em um público passivo, no qual o espectador aceita o que a instituição consegue aprovar em sua estratégia e dentro de um restrito território de liberdade tolarado por esse modelo.

Muitos tópicos que há interesse comum em vivenciar são inaceitáveis pelo sistema de financiamento. Outros não se encaixam em um paradigma sustentado pela ideia de arte como concentrador de valor. Neste caminho, estaremos criando espaços multidisciplinares com a colaboração de artistas visuais, músicos, cineastas, arquitetos e designers que serão explorados pelo público de forma não sincrônica e independente. O espectador poderá descobrir as senhas por conta própria, com fluxos de visitação suaves e espaçados. Nesses espaços, uma nova linguagem expositiva pode surgir junto com uma nova proposta econômica para o setor. Várias experiências já estão pipocando pelo planeta, como exposições de arte drive-in, espaços imersivos como os do coletivo TeamLab e o PaceX, da Pace Gallery, até um espetáculo teatral espalhado por uma cidade japonesa, em suas janelas e varandas.

Claramente, o modelo patriarcal no qual o estado ou o colecionador decide aquilo que o espectador pode vivenciar parece ter seu tempo esgotado. Ou nos tornamos ativos no processo de invenção de novos formatos que vão substituir o atual, seja privado ou estatal, ou deixaremos de ser agentes culturais para sermos enfeites culturais. Existe uma oportunidade enorme na mesa, de virar o jogo para algo fundamentalmente mais forte.

Se, por um lado, o mundo digital nos ofereceu a possibilidade de sincronização total das pessoas em suas telas em tempo real, o desafio reside hoje em como criar experiências físicas para esse novo tempo. Precisamos substituir a ação cultural baseada na fricção pela vivência compartilhada do rastro. Uma das senhas que vejo com grande potencial de agente transformador é a ideia de assincronismo. Durante muito tempo valorizamos o poder do sincronismo, de juntar pessoas no tempo para potencializar seu alcance e resultado econômico. Hoje vejo uma possibilidade de valorizar a experiência à custa da sincronicidade.

Se for gratificante, podemos sim viver separados no tempo, ou em grupos menores. Lembrei da minha vivência com a arqueologia, cuja emoção de compartilhar um espaço, uma caverna, ou boqueirão com um povo da pré-história pode ser épica, mesmo sendo condicionamento assincrônica com eles. A principal mudança no épico arqueológico é re-imaginar o papel do espectador: de passivo receptáculo de informação a ativo investigador de evidências. A arte está nas cinzas que somos capazes de entender.

A poesia é apenas a evidência da vida. Se sua vida está queimando bem, a poesia é apenas a cinza. ”
— Leonard Cohen

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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