Um brinde aos mortos – e feliz dia do amor finito — Gama Revista

Um brinde aos mortos – e feliz dia do amor finito

A relação entre amor e morte em uma resenha de “Um Brinde aos Mortos – Histórias daqueles que ficam”, de Vinciane Despret

Marilene Felinto 12 de Junho de 2023

“E agora que não creio mais no amor romântico e de casal, estou preparado para amar: de forma finita, imanente, anormal. (…) [e] sinto que estou começando a me preparar para a morte. Feliz Dia dos Namorados” e “Um Brinde aos Mortos”!


A declaração corajosa é do filósofo espanhol Paul B. Preciado. Mas o livro que resenho aqui, e que também remeto ao Dia dos Namorados, é “Um Brinde aos Mortos – Histórias daqueles que ficam”, de Vinciane Despret (n-1 Edições, 2023).

O que uma coisa tem a ver com a outra, pode não estar claro, mas faz algum sentido, de que tratarei adiante.

O que importa aqui é a obra da belga Vinciane Despret, 63, filósofa e psicóloga referência nos estudos da filosofia da ciência e do comportamento animal, e também uma excepcional pensadora do tema da morte, ou melhor, da relação entre os mortos e os vivos, “os que ficam”.

Neste brilhante “Um Brinde Aos Mortos”, Despret questiona a aposta no “luto total”, na convencional e psicologizante “elaboração do luto” como sinônimo de cura para o sofrimento de quem perdeu uma pessoa querida, e que tem, na verdade, como objetivo, “esquecer” o morto ou livrar-se dele.

Pelo contrário, o que ela mostra é que o continuado relacionamento de quem fica com quem se foi é vetor de vitalidade para ambos – uma vez que os mortos estão mais ativos do que se imagina, influenciando nossas vidas. Nas diversas histórias que lhe foram narradas para esta investigação, e são contadas no livro, Despret identifica a relação intensa e cotidiana de parentes, amigos e amantes com seus mortos, em todas as culturas do mundo.

O continuado relacionamento de quem fica com quem se foi é vetor de vitalidade para ambos

Ela ressalta a importância dessa interação, da tarefa de “cuidar dos mortos”, não os esquecer, não dar por terminada a vida deles, de tirá-los da invisibilidade, reacomodá-los nas vidas dos vivos – vidas também “deslocadas” pelo advento daquela morte, e que também precisam de reacomodação.

Salutar, consolador e mesmo feliz é o que a filósofa vê no ato de os vivos tratarem o morto a partir de um trabalho de “extensão da biografia” dele, oferecendo a ele “mais” existência, um prolongamento de sua presença, por meio de diversos dispositivos que expressam o genuíno desejo de aprender a “reencontrar” a pessoa morta.

Os dispositivos são diversos: narrativas, sonhos, vozes, homenagens, continuação do trabalho ou da arte dele, “sinais” de todo tipo, via leituras ou filmes, lembranças etc.. “Lembrar não é um simples ato da memória. É um ato de criação”, diz Vinciane Despret, “é fabular”.

“Os mortos fazem daqueles que ficam fabricantes de narrativas”, continua a filósofa. “Tudo começa a se movimentar – sinal de que alguma coisa ali insufla a vida. É preciso encontrar um lugar, o que também quer dizer que é preciso lhes dar um lugar. Os mortos nos obrigam a nos mover.” Os mortos nos deslocam, conclui.

Prolongar uma existência, e prolongá-la de outra maneira, é o que ela chama de “herdar” – de modo tal que fica uma vida então misturada com o desaparecido e com aquilo que ele deixa. Nessa discussão que ela aborda de modo tão delicado e bonito, importa menos o nome ou o qualificativo que se possa dar aos dispositivos: se são “simbólicos”, metafóricos, fantasmas, superstições, espíritos, “imaginação” ou “verdadeiro e real”. A pesquisa de Vinciane faz aí sua crítica ao positivismo comtiano, que consagrou uma versão laica e materialista da morte, no fim do século 19.

E é também crítica à antropologia “branca”, cujos profissionais, segundo ela, “remetiam ao registro simbólico as crenças e práticas bizarras daqueles que estudavam: por exemplo, quando eram confrontados com o fato de que seus informantes afirmavam que os mortos falavam com eles ou que era preciso alimentá-los para acalmá-los, os pesquisadores (…), convencidos de que os mortos não falam nem são alimentados, pois estão mortos, consideravam que essas relações vinham de uma ordem metafórica ou simbólica, o que evitava que questionassem os seres nelas comprometidos”. Para concluir essa ideia, a filósofa cita Philippe Descola, que afirma que os brancos inventaram o simbólico nos encontros com os “outros” apenas para não ficarem loucos.

Além de brindar aos mortos neste livro de rara sensibilidade na pesquisa de um tema, Despret brinda o leitor com uma investigação pessoal sobre um enigma da vida e morte de um seu tio-avô, Georges, ele que, morto quando tinha apenas 14 anos, em 1904, tem sua biografia reconstituída pela sobrinha-neta que não o conheceu, mas se sente ligada a ele por um dever de “transmissão”, de realização de uma “passagem”.

“Um Brinde aos Mortos – Histórias daqueles que ficam” foi lançado em francês em 2015. No Brasil, a autora tem também publicados “O que diriam os animais?” (Ubu, 2021) e “Autobiografia de um polvo: e outras narrativas de antecipação” (Bazar do Tempo, 2022).

Os mortos são gente como os outros

Relacionar amor e morte, como fiz no início desta resenha ao citar Preciado, não tem a ver diretamente com o livro de Vinciane Despret, mas sim com o que a leitura dele despertou em mim. A declaração do espanhol, em si, é o que eu mesma gostaria de ter escrito ou de vir a escrever um dia (quando minha descrença já for total).

Da frase de Preciado, o trecho “sinto que estou começando a me preparar para a morte”, provocou um pequeno choque quando a li no mesmo dia em que passei pelo bairro onde viemos morar em São Paulo, 55 anos atrás: pois tinham acabado de derrubar a casa que ali ainda resistia, construção velha, já muito avariada pelo tempo e sem reformas, o porão escuro, no subsolo de três sobrados geminados, lugar horrível de se viver. Mesmo assim, tinha sido parte de nossa história. E naquele dia, tudo tinha vindo abaixo – ali estavam os destroços de mim mesma, os escombros, cacos e pó.

Naquela atmosfera de demolição e finitude, lembrei do poema “Última Canção do Beco”, de Manuel Bandeira (“Vão demolir esta casa/Mas meu quarto vai ficar/ Não como forma imperfeita/ Neste mundo de aparências:/Vai ficar na eternidade,(…) Intacto, suspenso no ar!”).

E lembrei de minha mãe, que morreu no ano passado. Quando fomos a uma praia de Santos jogar suas cinzas no mar, um pássaro branco pousou no molhe de pedras bem perto de nós. Garoava. E o pássaro nos fez essa inesperada companhia. Só bateu asas de novo, de volta para mar aberto, quando terminou aquela nossa desajeitada cerimônia.

Apostei que era minha mãe reencantada naquele pássaro, trazendo até nós sua presença, acalentando a nossa tristeza, naquela “passagem”. Lá estava ela, senti, porque os mortos são gente como os outros, como diz Vinciane Despret. Eu ainda não tinha lido este livro – mas já sabia que minha mãe continua aqui, intacta, suspensa no ar, às vezes voando, às vezes simples vento quente e bom.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).