Artigo

Como criar futuros baseados em cuidado e confiança?

Projeção indica que US$ 18,3 trilhões passarão a novas gerações até 2030 e, pela primeira vez, 50% da riqueza do mundo será de mulheres

Ana Sarkovas Guarita e Denise de Castro 07 de Julho de 2025

O momento atual é de múltiplas crises: ambiental e climática, desigualdade social, geopolítica e migratória, econômica, energética, alimentar, tecnológica, na saúde e na educação. Manifestações de sistemas interconectados em colapso, tais crises refletem desprezo pela natureza, pela interdependência das relações humanas e planetária. Polarização, radicalização e desinformação agravam ainda mais esse cenário.

Esses temas foram recorrentes no Filantropando, evento do Instituto Beja, que discute os desafios e caminhos possíveis da filantropia. As diversas vozes presentes no evento, que convidava imaginar o futuro, desafiam a transcender a fragmentação e buscar articulações que integrem ciência, arte e dimensões simbólicas, criando respostas verdadeiramente transformadoras. Nesse percurso de reflexão, nos inspiram os questionamentos do “Manifesto da Transdisciplinaridade”, do cientista romeno Basarab Nicolescu.

“A antiga visão continua senhora deste mundo. De onde vem esta cegueira? De onde vem este desejo perpétuo de fazer o novo com o antigo? De onde vem este desprezo pela natureza, que se pretende, sem nenhum argumento sério, muda e impotente no plano do sentido de nossa vida?”

É uma tarefa fundamental para a filantropia, neste momento, abandonar visões fragmentadas e abrir um diálogo transformador, repensando nosso lugar no mundo.

Alguns caminhos possíveis para transformar nossas relações e criar futuros baseados em cuidado e confiança passam por desnaturalizar dinheiro e poder. Em seu livro mais recente, “Survival of the Richest: Escape Fantasies of the Tech Billionaires”, o teórico norte-americano Douglas Rushkoff traz exemplos de como a mentalidade individualista, que busca soluções pessoais para escapar das crises, apenas aprofunda os problemas estruturais. Justamente porque as crises que enfrentamos não são fenômenos isolados precisamos questionar essa naturalização, que reforçam relações baseadas no medo e no controle, e a centralidade do poder e da riqueza.

Não é de hoje que Rushkoff analisa como a narrativa do crescimento econômico constante naturalizou a ideia de que acumular riqueza equivale a exercer poder e influência. Essa ideia reduz a diversidade de formas de valor que podem existir em uma sociedade.

A importância de modelos econômicos que respeitem os limites planetários e promovam o bem-estar humano, questionando a ideia de crescimento infinito, também não é nova. Mas ela exige reimaginar o poder, a economia, as empresas, os investimentos, os incentivos, entre muitos outros campos e relações, e inclusive já existem movimentos e articulações nessa direção.

Outro caminho é o do investimento sistêmico, difundido pela Transcap, resposta ao papel da alocação do capital financeiro para catalisar a transformação de sistemas inteiros. No fim, o intuito é promover mudanças estruturais sustentáveis e capazes de gerar valor para todas as partes interessadas, ao invés de resolver problemas de forma isolada.

É uma perspectiva sistêmica, que reconhece que os sistemas vivos são interdependentes, e devemos aprender a reconhecer e nutrir as conexões, tornando transformações individuais e coletivas possíveis.

Reconhecer essa perspectiva e torná-la prática é uma escolha com enorme potencial transformador, sobretudo na atual conjuntura. A projeção é que haja a maior transferência de riqueza da história com US$ 18,3 trilhões passando para novas gerações até 2030. Pela primeira vez, 50% da riqueza do mundo estará sob a responsabilidade de mulheres.

Essa transferência de renda tem potencial para transformar as dinâmicas econômicas e sociais globais. Ela pode reforçar desigualdades ou ser uma oportunidade para redistribuir riqueza de forma mais equitativa, dependendo das escolhas de indivíduos, famílias e governos.

Um outro exemplo de mudanças em curso é o modelo da Purpose Foundation, uma alternativa à supremacia dos acionistas nas estruturas societárias das empresas, preservando o propósito no longo prazo e dissociando os direitos econômicos dos de veto e de voto sobre as decisões do negócio. Empresas como a Patagônia e a Bosch são algumas que já seguem esse modelo.

Tais fatos são um convite a questionar, refletir e prototipar. Segundo o conceito cunhado pelo futurista Kevin Kelly, investir em imaginação e colocar em prática, de forma contínua e realista. É hora de experimentar novas estruturas e repactuar as relações de poder, hoje assimétricas e que reproduzem as desigualdades estruturais.

Corpo integrado à experiência

Como elo entre o individual e o coletivo, o corpo é um terreno fértil para imaginar futuros que conectem cuidado e confiança. Essa “tecnologia” serve como uma metáfora poderosa para as articulações entre temas e áreas interconectadas.

Mais do que singular, o corpo é um território em que a coexistência, o cuidado e a confiança — ou a ausência deles — se tornam visíveis e palpáveis. Ele reflete dinâmicas sociais, econômicas e educacionais, sendo um ponto de partida para mudanças sistêmicas. Assim como políticas públicas podem integrar saúde e sustentabilidade, práticas corporais podem ajudar indivíduos e coletivos a vivenciar transformações conectadas ao meio e às relações ao seu redor.

O corpo, a partir de experiências compartilhadas, nos ensina sobre a coexistência coletiva e a dinâmica da impermanência, fazendo pensar em sistemas vivos e dinâmicos, capazes de preparar indivíduos para um futuro repleto de incertezas. É a experiência que nos coloca em contato com a profundidade do mundo, permitindo que as aprendizagens sejam vividas, e não apenas absorvidas como informação. A experiência, afinal, é sempre uma manifestação do corpo, capaz de revelar caminhos para transformar paradigmas e acolher a diversidade da vida.

No exercício da prática filantrópica, cuja raiz significa o exercício do “amor pela humanidade”, como podemos garantir que as experiências encarnadas possibilitem formar indivíduos e grupos para a coexistência? Como garantir que essas experiências ocorram? Quais experiências nos escapam e impedem que o novo emerja? E, não menos importante: por que nos escapam?

Ao pensar e investir em processos de transformação, é preciso abrir espaços para um olhar para o corpo como algo mais integrado à nossa experiência do mundo, não apenas um “objeto” que simplesmente carrega a mente.

As estruturas invisíveis que sustentam nossas crises oferecem pistas para a mudança. Em termos econômicos, isso implica repensar a relação entre dinheiro e poder, propondo modelos que priorizem o bem-estar coletivo e respeitem os limites planetários. Na saúde e educação, olhar para o corpo como território de articulações entre diferenças pode inspirar práticas que integrem saúde física, emocional e social, moldando futuros mais adaptáveis e criativos.

Nenhuma transformação significativa ocorre sem reconhecer a multiplicidade de dimensões que compõem o bem-estar dos viventes. Interligadas em um todo dinâmico, essas dimensões dialogam continuamente. A economia, por exemplo, afeta o ambiente, influenciando os valores de cuidado e confiança e impactando os vínculos entre o individual e o coletivo. O corpo reflete essas dinâmicas em sua coexistência com o meio, evidenciando impactos e resistindo ou afirmando possibilidades de transformação.

Entre pequenos passos e grandes articulações, o poder de imaginar se traduz em força concreta para redefinir caminhos e criar territórios novos, nos quais a transformação necessária é possível.

Ana Sarkovas Guarita é cofundadora da ECOA Capital e atua no fortalecimento de negócios e organizações que promovem impacto positivo e transformação sistêmica, construindo pontes para futuros possíveis. Com formação em Ciências Sociais (USP) e Comunicação Social (ESPM), tem experiência nos setores financeiro, florestal e social, trabalhando na interseção entre investimentos, mensuração de impacto e inovação. Presidente do Conselho Consultivo de Clarice, estúdio de inteligência e imaginação sobre mulheres e poder, é membro emérito do Sistema B Brasil e embaixadora da Purpose Foundation no Brasil. Parceira de vida do Dario, mãe de Luisa e Marina e madrasta de Tom e Zeca, encontra inspiração na cultura, na arte e no contato com a natureza.

Denise de Castro é mestre em psicologia clínica e graduada em fisioterapia. Diretora, pesquisadora e professora do Instituto Corpo Intenção (SP), é a criadora do Método Corpo Intenção e da Técnica de Alfabetização Corporal, fundamentos da Terapia e Educação Alfacorporal. Autora do livro O método corpo intenção: Uma terapia corporal da prática à teoria (2016, Summus-SP), é idealizadora de projetos culturais em construção, como Paradoxos: entre os corpos possíveis e linguagem e transdisciplinaridade: Um convite ao encontro, que articulam arte, saúde e educação.