“A Mulher da Casa Abandonada”: um arquivo vivo sobre o horror — Gama Revista
Ilustração/ @catarinapignato

“A Mulher da Casa Abandonada”: um arquivo vivo sobre o horror

Antropólogo analisa questões relacionadas à moradia e ao racismo sistêmico, que estão por trás da história resgatada pelo jornalista Chico Felitti em podcast

Paulo Augusto Franco de Alcântara 13 de Julho de 2022

Na mais recente história levantada e contada pelo jornalista Chico Felitti, “A Mulher da Casa Abandonada”, um podcast da Folha de S. Paulo, tudo, de partida, chama muito atenção e desperta curiosidades. A casa de aparência abandonada está encravada no meio de prédios residenciais de Higienópolis, um bairro de classe média-alta da cidade de São Paulo. Dentro dela vive uma mulher que se apresenta como Mari, e que se mostra, na maior parte do tempo, com o rosto coberto por uma espessa camada de pomada branca. A figura da mulher mistura-se com a imagem da casa: o abandono, o fantasma ou a “bruxa”, como é conhecida por alguns na vizinhança.

Mas, a maior relevância da investigação feita por Felitti sobre essa história, a meu ver, não está circunscrita a esse cenário aparentemente tão peculiar. Muito pelo contrário. Os detalhes que compõem o caso agem em metonímia, isto é, ganham sentidos muito mais amplos e complexos, e perduram para além das cenas inicialmente descritas. Nesse sentido, a investigação sobre uma personagem, até então anônima, e sobre um caso que quase pode parecer uma lenda urbana comum, acaba revelando as fraturas presentes em quadros históricos e sociológicos mais gerais. Os elementos apresentados remontam um arquivo vivo sobre o horror que é a duração ? no tempo, no espaço, nas relações e nas ideias ? do racismo e da ordem escravocrata, dentro e fora do Brasil.

A casa é vestígio e expressão de diferentes formas de desigualdades que historicamente produzem as cidades no Brasil

Mari, na verdade, é Margarida Bonetti, procurada pelo FBI por ter escravizado, junto ao marido René Bonetti, uma mulher nos Estados Unidos por mais de 20 anos. A pessoa anônima converte-se em sujeito histórico. O caso é, na verdade, é exemplar importante de um problema público nada restrito a um espaço e a um período. A empregada doméstica que prefere não ser identificada agora forma um coro entre muitas outras mulheres que sofreram e sofrem em situações análogas à escravidão, muitas vezes em silêncio.

A casa é muito mais do que o “abandono” que vemos em sua fachada. Ela é vestígio e expressão de diferentes formas de desigualdades que historicamente produzem as cidades no Brasil. Felitti nos conta que a ruína familiar em litígio provém da elite política e financeira paulistana que se perdura desde, no mínimo, o período imperial. E hoje, o fato de a casa ser vista como uma espécie de anomalia num bairro dominado por prédios só pode ser pensado em relação ao contexto do mercado imobiliário especulador. Este é responsável por, entre outros problemas, concentrar e reproduzir renda e poder por meio do acesso desigual à moradia.

A “casa abandonada” se torna uma febre nas redes sociais no mesmo momento em que um censo realizado pela própria prefeitura da cidade aponta que mais de 30 mil pessoas vivem atualmente em situação de rua, ou seja, sem acesso à moradia. É importante lembrar que a manutenção cotidiana dessa desigualdade é peça da máquina que continua a produzir o racismo no Brasil. O mesmo censo aponta que 71% da população em situação é composta por pretos e pardos.

Individual e coletivo estão, portanto, em constante rebatimento em “A Mulher da Casa Abandonada”. Diante desse caso podemos entender que a História (aquela com H maiúscula) é construída e praticada por ações e relações cotidianas, no passado e no presente, muitas vezes, abrigadas nas relações de poder, seja no silêncio eloquente de uma rua pacata ou no sono dos documentos judiciais e do Estado, agora perturbado pelo jornalista.

Levar a sério um caso individual, nesse sentido, é compreendê-lo como parte de um arquivo vivo, identificando o seu papel em meio a um conjunto de problemas históricos e sociológicos. Nesse caso, o mistério local vem sendo convertido em indignação geral, mas, mais do que isso, deve compor uma lição poderosa para que o horror pare de se repetir.

Paulo Augusto Franco de Alcântara é antropólogo e pós-doutorando no Departamento de Antropologia de Universidade de São Paulo (pesquisa financiada pela Fapesp)