Como dizer a verdade para as crianças
Especialistas enfatizam a importância de dizer a verdade para as crianças, e dão caminhos e ideias de como fazê-lo
Se você é pai, mãe, cuidador ou tem algum contato com crianças, pode ser que passe pela sua cabeça o medo de ser surpreendido, a qualquer momento, com questões de alta complexidade, como: “o que é sexo?”, “o que é racismo?” ou até mesmo “o que acontece depois que morremos?”. Crianças são seres curiosos, questionadores, inteligentes — e justamente por isso, dizer (e saber como dizer) a verdade é um dos ingredientes principais na receita da infância.
Mas claro que, nessa mistura toda, o que não falta é particularidade. Cada situação é única, e a maneira de explicitar o real implica na idade dos pequenos, crença dos cuidadores, visão de mundo, capacidade de compreensão. Há apenas um ponto universal nessa conversa: “Não vale mentir. A mentira faz com que se perca a segurança emocional, que é esse lugar em que a criança sente que, mesmo que o adulto tenha algo ruim para contar, ele vai fazer isso”, diz Alexandre Coimbra, psicólogo do programa “Encontro com Fátima Bernardes”. “O resultado dessa atitude é que a criança entende que pode, também, contar coisas ruins para o adulto, compartilhar, pedir ajuda.”
Crianças são sujeitos de direito, e como tal, devem ter acesso à informação
Sinceridade é um acordo — se desde cedo os pais e cuidadores colocam a verdade como premissa moral, como um valor importante, as crianças tendem a seguir o mesmo caminho. “Se uma família mente como rotina, mesmo que nas pequenas coisas, e estabelece limites a partir de mentiras, a criança entende que pode mentir também”, explica a pediatra Rosane Souza, integrante do NegreX, coletivo de profissionais negros da medicina. De acordo com ela, nesse contexto, o pequeno deixa de ver seus cuidadores como pessoas de quem pode esperar a verdade, e por isso, pode tentar buscar outras fontes de informação. “E nem sempre serão fontes adequadas, ou mesmo seguras, que querem o bem da criança tanto quanto seus pais ou cuidadores”, completa a psicóloga e professora da Universidade Federal da Bahia Juliana Prates.
Fato é: mesmo que pais e mães tentem esperar, ou mesmo esconder alguns assuntos por receio de antecipá-los de forma desnecessária, podem se frustrar. “As crianças não esperam nossas explicações sobre temas difíceis. Elas fazem, constantemente, a leitura do mundo social. Reparam nas pessoas a seu redor, nos espaços, nos livros, nos filmes”, conta Prates. “Elas são sujeitos de direito, e como tal, devem ter acesso à informação.” Ao que Coimbra completa: “A verdade tem esse componente de ajudar o pequeno a se frustrar. Mentir é negar à criança o direito de se frustrar. E olha, nos últimos tempos, a nossa intolerância à frustração está bem grande”.
Como dizer a verdade?
O conceito de verdade é diferente para adultos e crianças. O que é apenas uma demonstração dos fatos para os mais velhos, deve ser intermediado e traduzido no caso dos menores. “O entendimento da criança é permeado pela fantasia, pelo pensamento mágico. Isso muda a percepção do mundo. Por isso, precisamos traduzir a verdade, respeitando idade e entendimento”, explica Alexandre Coimbra. Nessa tradução, é sempre importante se atentar para o quanto de realidade entra no contexto infantil. Coimbra relembra a situação da pandemia, que por si só já era de difícil entendimento, e se tornou ainda mais complexa à medida que os pais passaram a conversar de assuntos duros perto dos filhos durante o isolamento. “O parâmetro em relação ao que dizer para os pequenos é: isso que eu vou dizer vai tirar a esperança do meu filho? Se tirar, prefira não contar.”
O entendimento da criança é permeado pela fantasia, pelo pensamento mágico. Isso muda a percepção do mundo
De acordo com especialistas, a melhor maneira de explicar sobre fenômenos e problemáticas do mundo para as crianças é no momento em que ela vivencia questões similares. “Não precisamos dar grandes aulas sobre o tema, nem discursos. São pouco efetivos. É mais poderoso trazer a temática de forma simples, com elementos que permitam que a criança pense e discuta sobre a partir de suas vivências”, explica Juliana Prates. No caso da morte de um animal de estimação ou algum conhecido mais distante, é interessante aproveitar o contexto para sanar dúvidas. Cenas de violência em filmes infantis, que não são escancaradas, podem ser ótimas para introduzir o tema, e por exemplo ensinar que aquilo é errado, que a vítima deve sempre buscar ajuda. Isso deixa claro que a criança não deve aceitar sofrer nenhum tipo de agressão.
A pediatra Rosane Souza atenta para o fato de que dizer sempre a verdade não significa dizer toda a verdade, e diz que devemos nos ater ao que a criança pergunta e demanda, e respondê-la de maneira concreta e objetiva. “Isso vai gerar respostas curtas, mas enquanto ela não estiver satisfeita, vai continuar a perguntar. Tudo o que ela tiver condição de entender, ela vai questionar.”
Mitos a serem quebrados
A parentalidade pode vir carregada de estereótipos — e cabe ao adulto quebrá-los, para o bem da relação com as crianças. Por exemplo: “A maior mentira que contaram para pais e mães é que temos que estar bem o tempo inteiro para o filho. Devemos estar presentes”, enfatiza Alexandre Coimbra. Segundo ele, em um momento de tristeza, em que a criança percebe que há algo errado, e pergunta se o pai ou a mãe estão bem, a resposta deve ser verdadeira — se estiver triste, diga. “Ela não perguntou o motivo, quer apenas se conectar. Você pode inclusive pedir carinho, colo, o que mostra para ela que não precisamos enfrentar momentos difíceis sozinhos.”
Algumas verdades, por mais difíceis que sejam, devem ser antecipadas, com a única justificativa de prever (e evitar) riscos. “É como a frase ‘coloca um casaco porque vai esfriar’. Se eu sei que meu filho vai viver uma experiência complexa, vou conversar com ele antes sobre isso, para que ele consiga elaborar uma resposta.” O psicólogo exemplifica o caso de uma criança negra que, ao começar a sair sozinha, pode sofrer um ataque racista sem apoio dos pais por perto. “Crianças são concretas, só vão conseguir entender de fato alguma coisa quando viverem aquilo. Se você antecipa, ela liga uma coisa com a outra, consegue responder, reagir, pedir ajuda.”
Se dizemos para a criança que álcool é ruim, mas consumimos todo final de semana, já mostramos incoerência
O mesmo se aplica para assuntos que são tabus mesmo para adultos — o sexo. “Temos muita facilidade de nomear nariz, ouvido, boca, mas muita dificuldade de falar em pênis e vagina, né?”, provoca a psicóloga e professora Juliana Prates. “Há esse mito de que falar sobre sexo com as crianças vai introduzí-las nesse universo antes da hora. E não, estamos apenas ensinando a reconhecer seu corpo, entender o conceito de consentimento.”
Também no assunto das drogas: na tentativa de manter os filhos longe de substâncias tóxicas e que podem fazer mal, adultos podem acabar na contradição. “Se dizemos para a criança que álcool é ruim, mas consumimos todo final de semana, já mostramos incoerência.” Prates indica a sinceridade: dizer que álcool traz uma sensação de prazer, mas ressaltar a interdição da idade, e relembrar as consequências do abuso em quantidade. “A filosofia do terror não funciona. Não adianta dizer que beber uma cerveja já causa inúmeros distúrbios. Precisamos trabalhar essas questões de forma cuidadosa, mas sempre verdadeira”, finaliza.