A vida depois do pornô — Gama Revista
Isabela Durão

A vida depois do pornô

Enfrentando traumas psicológicos e emocionais, preconceito e dificuldade para se adaptar, ex-atrizes pornô contam como retomaram a carreira e a vida social

Leonardo Neiva 02 de Julho de 2021

“Depois que você entra nesse mundo, pode até morrer, ir parar num caixão, e ainda vai ter gente batendo punheta para você”, descreve a atriz pornô, especialista em massagem tântrica e dominatrix Emília Elias de Figueiredo, 26, mais conhecida na internet como Emi Rippi. Essa é a consciência necessária para toda atriz ou ator que entra para a indústria pornográfica, segundo a jovem — mas que nem todo mundo tem. “Não tem como sair, não tem como apagar. Depois que caiu na internet, seu vídeo já viralizou, simplesmente descarte essa possibilidade.”

Graduada em logística, área em que atuou por quatro anos, Rippi trabalhou durante um ano na indústria pornográfica. De acordo com ela, não por necessidade, mas por escolha. Após sofrer assédio em seu emprego, na área em que é graduada, tentou cometer suicídio e chegou a ficar seis meses internada numa clínica psiquiátrica. Ao sair, viu que várias garotas estavam ganhando a vida como cam girls, jovens que fazem serviços de conteúdo sexual pela câmera em troca de dinheiro. Ela investiu na carreira e começou a ser paga para fazer poses sensuais, se masturbar ou mesmo conversar com o clientes — segundo Rippi, 65% dos pagantes só estão ali pela companhia que ela traz. Em meio a esse trabalho, a jovem foi notada e convidada a fazer seu primeiro filme.

Em relação à indústria, Rippi é categórica. “Se tem alguma atriz que fala que nunca se sentiu vítima de violência ou trauma, é mentira.” No caso da jovem, o caso mais marcante aconteceu durante a filmagem de uma cena de suruba. Naquele dia, outras atrizes tinham faltado e, para compensar, em vez das duas cenas que tinha combinado fazer, ela acabou gravando sete.

Em uma delas, o ator com quem contracenava ultrapassou um limite que tinha sido pré-estabelecido. “As pessoas viram e não fizeram nada. Tive uma crise de riso na hora, trabalho isso na terapia até hoje. Foi um choque, não consegui reagir, empurrar… e dá para perceber na cena.”

Não tem como sair, não tem como apagar. Depois que caiu na internet, seu vídeo já viralizou, simplesmente descarte essa possibilidade

Depois disso, Rippi tomou a decisão de largar a indústria. Ficou 11 meses afastada, um tempo para se recompor, recalcular rota e explorar seus potenciais. No fim das contas, aproveitou a pausa para investir e acumular conhecimento em um assunto que a fascinava: a massagem tântrica. Também avaliou sua relação profissional com o sexo. Hoje, vende a clientes videochamadas de conteúdo sexual, sessões de submissão como dominatrix e de podolatria, voltadas para quem tem fetiche em pés. “É também uma maneira de alguns dos meus fãs poderem me conhecer pessoalmente.”

Voltou inclusive à pornografia, mas agora só aceita fazer as coisas do seu jeito. “No meu canal no XVídeos [famoso site pornô], eu dou as ordens, escolho os atores e escrevo meu roteiro.” Portanto, não é possível encontrar na página, que conta com quase 29 milhões de visualizações, os filmes gravados pelas produtoras, apenas cenas feitas pela atriz de forma independente — seu estilo, ela avisa, é mais puxado para o amador. O que não significa que esses vídeos não continuem rodando por aí, incluindo aquele que a fez desistir da indústria.

“Eu pedi para cortarem aquela cena, e a produção concordou. Só depois descobri que foi para o ar. Quando assisti, entrei num colapso”, conta Rippi, que diz enfrentar preconceito diariamente por sua ocupação. Em seus planos, inclui a ideia de criar cursos para as jovens que estão entrando nesse universo, para que entendam logo de início o impacto que essa escolha terá para sua vida pessoal e profissional e tenham mais autonomia no trabalho. “É muito triste, muito doloroso ver outras mulheres sofrendo e tendo que passar por isso”, diz a atriz com a voz embargada.

Cicatrizes psicológicas

O que acontece com atrizes pornográficas após o fim de suas carreiras na indústria? Carreiras que, devido às restrições relacionadas à idade, costumam ser bem curtas, raramente passando de uma década. A questão tem chamado a atenção do público recentemente, em especial após a série de documentários “After Porn Ends” (depois que o pornô acaba) (2012), que explora a readaptação de algumas das maiores estrelas do pornô americano à sociedade após o fim de seu tempo na indústria.

Além disso, algumas dessas atrizes têm se mostrado cada vez mais abertas a compartilhar com o público as dificuldades que enfrentam desde que largaram a carreira. A libanesa Mia Khalifa, 28, uma das mais conhecidas do gênero nos últimos anos, além dos traumas emocionais e a depressão que enfrenta até hoje, já declarou ter recebido apenas US$ 12 mil durante sua rápida passagem pela indústria. “A dificuldade de encontrar um trabalho normal depois de sair da pornografia foi assustadora”, disse no Twitter.

A ex-atriz Lana Rhoades trabalhou apenas seis meses na indústria, tempo suficiente para que desenvolvesse cicatrizes psicológicas por algumas das cenas extremas e de humilhação que diz ter protagonizado. Hoje focada numa carreira como influenciadora, com mais de 15 milhões de seguidores no Instagram, ela também relatou dificuldade para conseguir emprego após largar a profissão. “Eu sempre vou ser uma estrela do pornô, independentemente de querer isso ou não. Lido com a depressão e pensamentos suicidas todos os meses por conta do meu passado no pornô. Estou apenas sendo sincera, não é uma grande coisa carregar esse título.”

Eu sempre vou ser uma estrela do pornô, querendo ou não. Lido com a depressão e pensamentos suicidas todos os meses por conta do meu passado

Vazio no currículo

Antes conhecida pelo codinome Penny Flame, a americana Jennie Ketcham, 38, esteve ativa na indústria por quase dez anos. Depois que deixou a carreira de atriz, ela conta a Gama que passou por um período difícil na tentativa de se reposicionar profissionalmente. “O conjunto de habilidades que desenvolvi na pornografia era intransferível, e meu currículo tinha um vazio correspondente a oito anos de carreira.” Mais complicado ainda, no entanto, foi modificar seu estilo de vida e suas expectativas. “Acabei empregada como hostess em um restaurante, com algumas das melhores pessoas com quem já trabalhei, mas a forma como tive que mudar minha participação no mundo foi drástica — o que incluiu alterar o padrão de consumo e o estilo de interação com as pessoas ao meu redor.”

Fazer pornô funcionou para mim por algum tempo. O maior desafio começa quando estar na indústria não combina mais com seu estilo de vida

Além de ter lançado um livro com suas memórias, Ketcham hoje é psicoterapeuta especializada em transtornos de ansiedade. Ela diz que as dificuldades psicológicas pelas quais passou a ajudam a se aproximar das emoções de seus clientes. Segundo Ketcham, uma participação no programa de TV do médico e celebridade da mídia americana Dr. Drew, para lidar com suas compulsões sexuais, mudou sua vida e a ajudou a se conectar com outras pessoas que sofriam de distúrbios parecidos.

“Fazer pornô funcionou para mim por algum tempo, assim como para muita gente. O maior desafio começa quando estar na indústria não combina mais com seu estilo de vida”, afirma Ketcham. “Não existe bem ou mal nessa questão, mas se uma pessoa permanecer ali além do tempo em que a coisa está funcionando, provavelmente não vai fazer bem para ela.”

Filmes pornô e energéticos

A ex-atriz pornô Bruna Ferraz, 39, uma das celebridades do gênero no Brasil, se aposentou das câmeras em 2017, após uma carreira de cerca de uma década. Desde então, montou uma produtora cinematográfica própria, a Prime 4 You, onde atua como diretora, roteirista e produtora-executiva de filmes eróticos, com uma perspectiva voltada à valorização feminina. Pela produtora, também planeja desenvolver um workshop online voltado para mulheres, para tirar dúvidas sobre sexo e apimentar o relacionamento, tratando de questões como sexo anal e as melhores posições para aumentar o tesão do marido. “Percebi essa necessidade quando estava na manicure. Elas aproveitam ali para me fazer essas perguntas mais delicadas, que têm vergonha de falar em outros lugares.”

Além disso, como empreendedora, acaba de lançar uma linha própria de bebidas energéticas, a Full Night. No anúncio, o produto de baixas calorias promete ser afrodisíaco e agir na hidratação do fígado. “O meu nome é forte, pensei em usá-lo como marca. Como já tomei muito energético, por que não fazer um usando ele?” A ideia era também desenvolver uma linha de trabalho que não dependesse apenas de seus atributos físicos. “Se sou um símbolo sexual, só posso trabalhar com meu corpo? Não, tenho mais a acrescentar.” Mas a pandemia acabou atingindo suas duas linhas de atuação. Se, por um lado, as filmagens foram paralisadas, por outro, a necessidade de isolamento acabou fechando as portas de boates e casas noturnas, onde o produto seria consumido, e afastando boa parte desse público. “Antes ia nesses lugares, me apresentava e deixava uma caixa de energético na casa para ser vendida aos clientes.”

A menina precisa pensar muito lá na frente. É igual político, a pessoa nunca mais vai ser vista como outra coisa

O produto ainda pode ser encomendado pelas redes sociais da empresária, com entrega para todo o Brasil. O projeto é levar o energético às prateleiras de mercados e atrair um público mais afeito às academias. “É enviado com uma carta escrita pela Bruna, que inclui um beijo dela. O que vende o energético hoje é a imagem dela. São os fãs que compram, pelo menos até as coisas se reaquecerem”, explica o assessor Felipe Fabinho.

Embora não se arrependa de seu período como atriz, Ferraz não recomenda a carreira para as jovens de hoje. “A menina precisa pensar muito lá na frente. Eu, por exemplo, tive problemas com meu pai. É igual político, a pessoa nunca mais vai ser vista como outra coisa. Os valores também mudaram muito, se paga menos que antes, além de a profissão ser vista no Brasil como prostituição. Eu aconselho a não entrar, é preciso ter uma perspectiva daqui a cinco ou dez anos. A pessoa precisa de uma cabeça muito boa, pensar no que o pornô vai agregar para ela, o que vai querer ser depois que aquilo acabar.”

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