Isabelle Moreira Lima
Não harmonize vinho com tristeza
Agora é momento de cautela, afinal fica fácil exagerar quando o bar (de casa) não fecha, quando todos os dias parecem iguais e, principalmente, quando há mágoas demais a serem afogadas
“Bebo champanhe quando estou alegre e quando estou triste. Algumas vezes, bebo quando estou sozinha. Se estou acompanhada, considero-o obrigatório. Bebo uns golinhos quando estou com fome. Fora isso, não toco nele — a não ser, é claro, que esteja com sede.”
A frase é de Lily Bollinger, que dirigiu com competência — o que se pode supor pelo potencial de marketing da frase — a maison de Champagne de mesmo sobrenome entre 1941 e 1971, e, depois de um ano quarentenada e apesar de gostar das borbulhas, eu não poderia discordar mais dela. Na tristeza, melhor evitar qualquer tacinha.
Seria hipócrita dizer que não aumentei a minha litragem na pandemia. Eu e 42% dos brasileiros ouvidos pela Opas (Organização Pan-Americana da Saúde da Organização Mundial da Saúde) ainda no ano passado aumentamos consideravelmente o número de taças e os dias em que o bar fica aberto em casa, com destaque para o consumo episódico alto (aquele em que se toma mais de cinco doses, ou seja, um porrezinho básico). É quase como se estivéssemos vivendo em “Druk” (2020), o filme de Thomas Vinterberg que mostra amigos bebendo para suprir um suposto déficit de 0,05% de álcool no sangue — e claro que a coisa degringola. Outro dado alarmante da pesquisa é que a presença de quadros graves de ansiedade aumentou em 73% a vontade de beber. E, Brasil, quem não está ansioso?
Não quero alarmar ninguém mais do que já estamos alarmados, mas há dados ainda piores da Opas, divulgados na última semana: o consumo de álcool foi 100% responsável por cerca de 85 mil mortes anuais durante o período de 2013 a 2015 nas Américas, onde o consumo per capita é 25% superior à média global. O Brasil tem uma fatia de 24,8% desse total de mortes. Enquanto a indústria comemora as altas das vendas — a dos vinhos finos nacionais cresceram 47,81% em fevereiro — eu pergunto: se o nosso consumo aumentou ainda mais durante a pandemia do que era de 2013 a 2015, aonde vamos chegar?
Bem, essa é uma coluna em que falo majoritariamente sobre vinho, se você está achando esse papo todo esquisito, gostaria então de lembrar que trata-se de uma bebida para se compartilhar com quem gostamos, para acompanhar comida, que é carregada de cultura, de história, que traz traços do povo e do lugar onde é produzida e portanto uma ótima maneira de se viajar sem sair do lugar. Dito isso tudo, ao mesmo tempo em que faz sentido beber quando se está trancado, porque afinal ela te leva a outros lugares, muitas vezes não se pode compartilhá-la com alguém. Agora é momento de cautela, afinal fica fácil exagerar quando não há regra nenhuma, quando o bar (de casa) não fecha, quando todos os dias parecem iguais. E, principalmente, quando há mágoas demais a serem afogadas.
Tem que ter muita água e uma boa reflexão sobre a hora de parar. E, principalmente, se os ânimos estão em viés de baixa, melhor deixar o copo vazio
Meu bar andou muito ocupado no começo da pandemia, com o serviço de vinho (e de cerveja, de coquetelaria, e do que mais estivesse disponível como taça do dia) meio desenfreado. Mas quando a gerência (euzinha aqui) percebeu que a coisa (isolamento, ansiedade, depressão por que não?) ia mais longe do que o imaginado, resolveu ter dia e hora para abrir o balcão. Ainda é um bar generoso, que funciona como a temporada teatral, de quinta a domingo, mas há um esforço para que algumas regras sejam seguidas.
A primeira delas é que só há happy hour (bebida sem comida) no fim de semana. Nas outras ocasiões, só tem taça com refeição. Outra: se mais de meia garrafa foi enxugada, tem que ter muita água e uma boa reflexão sobre a hora de parar. E, principalmente, se os ânimos estão em viés de baixa, melhor deixar o copo vazio. Como bem lembrou Marissa Ross, do excelente podcast Natural Disasters, não se harmoniza vinho com tristeza, pois a bebida tende a acentuar quadros de depressão.
A cada fim de semana, tento fazer com que o ato de beber seja algo festivo e celebratório, se não um exercício de degustação, que seja de harmonização. Se bebo menos, posso ser mais aventureira nas escolhas, o que tem sido inclusive educativo.
É muito fácil transformar o consumo de bebida em uma questão moral, é muito fácil demonizá-la. Mas é importante também levar em conta de onde vem a mensagem. A bartender, jornalista e pesquisadora Neli Pereira tem dado alertas importantes sobre o consumo de álcool na pandemia. “O Brasil me obriga a beber” virou bordão, ela escreveu em seu Instagram, e lembrou que é importante manter o corpo saudável nesses tempos e a mente atenta ao que está acontecendo. Quando lemos alguém tão apaixonado por bebida passar esse recado, é preciso prestar atenção: ela não está apontando um dedo, é preciso ter cuidado mesmo.
No começo do isolamento, o jornalista americano Eric Asimov abordou o tema vinho na solidão. Realmente é paradoxal: o que você faz se está só quando quer tomar uma bebida feita para ser compartilhada? É preciso, claro, ter os cuidados necessários, não exagerar quando se está só, evitá-la se há quadro de depressão ou outras doenças potencializadas pelo álcool. Mas, algumas vezes, um pouco de vinho pode mandar a mente a lugares inesperados e deliciosos. A questão é complexa, não tem receita fácil, não se pode exagerar, mas é difícil ficar no zero álcool quando se gosta de beber e estamos isolados. A reflexão é necessária para que cada um ache sua receita ideal. De minha parte, ainda bem que hoje já é quarta-feira.
Saca essa rolha
PARA CONHECER VINHOS ESSENCIALMENTE ALEGRES BRANCOS…
O Ombu Moscatel 2020 da uruguaia Bracco Bosca é cheio de vida, elegante e moderno, um branco com alma de laranja.
ESPUMANTES…
O Pét-Nat Arte da Vinha Natural Dry AIR 2020 é um corte de Sauvignon Blanc com Malvasia de Cândia com apenas 12% de álcool e menos gosto de levedura e mais de flor e limão.
ROSÉS…
O espanhol Sonrojo La Calandria já passou pelo seu feed, aposto. Ele já é vivo pela cor, superintensa, e é perfeito pra bebericar quando fizer zoom com os amigos (eu sei, eu sei, mas paciência, uma hora vai dar para fazer ao vivo).
…TINTOS
O português Confidencial 2018, feito pela Casa Santos Lima na região de Lisboa é simples, com muita fruta e um quê de balinha, bom, bonito e barato. E o delicioso Aqui Estamos Todos Locos Bequignol, que virou minha paixão de verão.
Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
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