“Certas coisas” é uma música de um encontro fértil de dois homens que admiro imensamente: Lulu Santos e Nelson Motta (o eixo touro & escorpião sempre rende muito, amo). A música me sequestra no primeiro acorde, e quando a letra começa não resisto a embarcar numa viagem cheia de antíteses entre a luz e a sombra, o silêncio e a sinfonia. Eu gosto dos polos. Eles me seduzem. Mas quando a última frase vem: “Tem certas coisas que eu não sei dizer”, eu fico tão perdida, mas tão. Após dizer tanto, Lulu Santos com seu timbre indefectível nos avisa que tem certas coisas que ele não sabe dizer. Me perco. Mas me acho?
Também eu falo muito e ainda assim: há muito que não sei. Uma vez em 2009, num curso sobre criatividade que fiz com outras pessoas que investigavam (e ainda investigam) processos criativos, ouvi uma frase que abriu uma mesa de luz na minha cabeça: O “não sei” é um campo ativo. Não saber é um campo vivo. Ao mesmo tempo, sou aquela agoniada na fila da padaria cuja pessoa à frente não sabe o que pedir e a moça do caixa fica batendo o dedinho no balcão e eu quase me junto, batendo o pé no chão. O não saber o que pedir é vivo também, mas não consigo não me angustiar. Quem sou eu na fila do pão?
Me maravilho com gente com muito conhecimento, sempre me apaixonei por gente excelente em alguma coisa, talvez pra compensar minha banalidade e insuficiência em tudo. Mas quando percebo que as pessoas não conseguem falar “Não sei”, nunca, nunquinha da silva, minha paixão começa a efervescer, tipo vitamina C, dessas que você coloca no copo e se você não toma tudo na mesma hora, diz que dez minutos depois já não tem nenhum efeito, é só uma água com gosto muito fake de laranja. Eu não sei de nada mas acho que quero vitaminas e não gostos artificiais.
No momento, entupida de informações, estou optando por ter momentos de não saber. Fico feliz quando alguém responde “não sei…”
Nunca se soube tanto. Ao mesmo tempo nunca se soube tão pouco. Observo as meninas de 13 anos e fico espantada com raciocínio já avançado, articuladas, com noção mundial para além da metodologia da escola, fico bem espantada e penso “Putz, eu não sabia de nada com 13 anos”. Mas aí lembro que meu colégio tinha ensino de música obrigatório e isso mudou minha vida e agora poucas escolas têm isso, infelizmente. Não sei o que é melhor: ter estudado música com 13 anos e ser ignorante sobre questões de gênero ou ter muita consciência e poder participar de debates sobre o assunto mas não saber onde está o Dó do piano. Olha, eu não sei. Tem certas coisas que eu não sei dizer mesmo. Claro que cada caso é um caso. Calhou da música entranhar em mim, aposto que algum ex-amigo da época deve lembrar das aulas de música como puro sofrimento. Hilária é a vida, hilária é a mania de quererem nos engavetar. Como podem?
Escrevo esse texto tentando eu mesma me policiar, os tempos que correm exigem respostas quase imediatas. “Oi Letícia, te mandei um email pra te lembrar da mensagem do whatsapp, mas qualquer coisa também te mandei uma DM pra você ficar ligada.” Então, eu preciso saber. Mas meu intestino é meu segundo cérebro (seu também, saiba), e a barriga sempre pontua quando pulsa paixão ou ansiedade. Quando me percebo muito sabichona, respostinhas rápidas, eu paro e não medito (não sei meditar, sou filha de uma pessoa que medita, mas meu buraco pertence a outro espaço), eu paro e ou bebo um vinho, ou vejo vídeos de crianças (crianças não sabem nada e são mais sábias que todas as pessoas com mais de 20 anos, fato), ou me utilizo de uma erva que é proibida no país (mas se você ler qualquer rótulo dos produtos mais vendidos de um supermercado, vê AÇÚCAR como primeiro ou segundo ingrediente). Não são simulacros, são estímulos que me ajudam a não saber. E no momento, entupida de informações, estou optando por ter momentos de não saber. Fico feliz quando alguém responde “Não sei…” Excluindo os negacionistas da ciência, que na verdade não são pessoas que assumem uma falta de conhecimento, pelo contrário, se julgam superiores, verdadeiros sabichões das fake news de whatsapp. Sabem tudo esses imbecis que atrasam o mundo! Diarreia, ódio e horror é o que desejo a todos.
Sócrates se revira no túmulo e ora concorda, ora me pede um pouco mais de razão. Não sei se eu chego numa resposta final pela razão. Talvez caetanize cada vez mais e assuma o mega discurso com um “ou não” ao final de tudo. Digo, mas me retiro? Há que existir um mix: da razão com a emoção. A hora do saber, a hora da decisão, a hora de decidir envolve muita coisa além da lógica. Um beijo pro meu instinto, amigo do intestino, que tantas vezes eu confundo, numa dislexia poética que não me ajuda a ser excelente, mas me ajuda a sobreviver.
Minutos antes de começar a chover, recém nascidos sonhando, David Bowie de Ziggy Stardust, ovo com gema mais pra mole só que a clara com casquinha, gente gentil em pleno trabalho maçante, amar a mesma pessoa há 8 anos, vídeos com peixes abissais: tem certas coisas que eu não sei dizer. Que bom.
Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.