De carro ao Uruguai Essa foi a viagem feita por Tato Coutinho há um ano. Na série de quatro textos, ele lembra como tudo começava com uma boa história e terminava com uma vontade danada de fazer tudo outra vez
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De carro
A decisão de viajar por terra resultava do abraço ao primeiro clichê, mas não apenas – estávamos nos despedindo da fubica, como meu sogro sempre se referiu ao nosso imperfeito exemplar da indústria automobilística francesa. Seu primeiro problema se apresentaria ainda no trajeto da concessionária para casa, em 2013, um estalo metálico no assoalho do banco de trás que desafiaria o especialista em barulhos da montadora por uma semana ou duas. Substituída a chapa metálica defeituosa, o painel digital com termômetro, relógio e o dial do rádio logo se recusaria a acender nos primeiros dias mais quentes. Antes do segundo ano, já éramos íntimos da equipe de pós-venda de pelo menos cinco oficinas autorizadas com problemas na automação dos faróis e limpadores de para-brisa, no acionamento do vidro elétrico, na bizarra chave-cartão ao trancar e destrancar as portas, no acionamento do motor de arranque (lembrando os velhos carros à álcool na partida pela manhã), na regulagem da injeção eletrônica, na pressão da bomba de gasolina – a grande maioria dos problemas relacionados ao que fomos apresentados como sua “central computadorizada”, literal caixa preta inclinada a desconfigurar-se sob determinadas condições de temperatura e pressão.
Paradoxalmente, trata-se de um carro maravilhoso quando funciona, espaçoso e confortável, de uma estabilidade elegante e excelente relação entre seu peso e a potência do motor. Fomos sempre muito felizes nas viagens anuais entre São Paulo e Florianópolis, muitas vezes em julho e dezembro, sem jamais enfrentar um único problema na estrada – a não ser a eterna preocupação do que nos aconteceria quando chegássemos à cidade de destino. O que nos levaria a desenvolver uma teoria sobre a fubica e seus pares.
Também os carros têm uma vocação própria independente do que imaginaram seus designers e planejou o marketing das montadoras
Também os carros têm uma vocação própria independente do que imaginaram seus designers e planejou o departamento de marketing de suas montadoras, corrompendo-os em campanhas fantasiosas em lugares que jamais frequentariam dirigidos por pessoas que – ainda bem – não existem de verdade. Nosso carro saiu de fábrica condenado a uma existência infeliz nas cidades, com um banho e polimento quinzenal e pinceladas de silicone nos pneus. Silencioso por natureza, custamos a perceber sua contrariedade em percursos de dez ou quinze quarteirões por São Paulo no mesmíssimo e exíguo tempo em que já nos levou de Joinville a São Francisco do Sul a caminho das temporadas de verão. Mesmo excessivamente baixo, sua melhor performance, está claro para nós agora, sempre foi acima dos dois mil giros, sem tanto vai e vem entre a primeira e a segunda marcha, livre como nas propagandas de um outro carro que ele julgava ser – mas jamais seria.
Numa espécie de tributo a este seu perfil idiossincrático, nosso roteiro previa estradas com um misto de pavimentos e exigências variadas e pouquíssimo trânsito urbano – com exceção de Montevidéu, onde passaríamos três dias. Além de liberá-lo para ser o que bem entendesse, era também um jeito de estabelecer uma boa relação com os encarregados da condução – Maria mais veloz e atrevida nas estradas rápidas; eu, menos afoito e impaciente nas esburacadas, a maioria delas ao sul de São Miguel das Missões. A complementaridade de estilos nos permitiu vencer entre 400 e 600 quilômetros por dia em jornadas de no máximo oito horas ao volante, com uma parada para o almoço e trocas cronometradas a cada duas horas. Por intuição, sei que o seu motor se entediava comigo, com a velocidade quase sempre ajustada no cruise control, mas se divertia à beça com a Maria, sempre à caça de uma ultrapassagem com uma esticada de marcha com o pé no fundo.
Quando chegamos à Florianópolis, completamente empoeirados depois de um atalho por 24 quilômetros numa serrinha de terra partindo do Parque Nacional de Aparados da Serra, na franja dos desfiladeiros entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, meu sogro nos recebeu com um rosbife rosado, pão fresco e o sorriso irônico de sempre – “e a fubica, como vai?”. Cansada, respondi por ela como aqueles maníacos que tratam os carros e os cachorros como alguém da família, mas feliz com a missão cumprida em melhor forma do que muito carro por aí, com uma média de 16 quilômetros por litro e nenhuma luzinha sequer piscando vermelha no painel. Nos fez, inclusive, duvidar da necessidade da extensão do seguro para circular nos países do Mercosul, a obrigatória Carta Verde – sim, você vai precisar gastar algum dinheiro com isso, além de uma boa dose de paciência com o 0800 da sua corretora.
Ainda que sem nenhum remorso por entregá-la pela metade do preço como entrada num carro japonês, quero deixar registrado meu sincero pedido de desculpas por todo sofrimento que impusemos a ela (e não o contrário) – tenho certeza de que boa parte dos problemas que nos causou teria sido evitada se seus ruídos fossem ouvidos em vez de, a todo custo, silenciados.
TATO COUTINHO é botafoguense e jornalista, com passagens pela Editora Abril, TV Cultura de São Paulo e Editora Trip. Atualmente trabalha no núcleo de linguagem da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty *A imagem que ilustra a investigação é a casinha na calle De San Pedro, a poucos passos do farol de Colônia de Sacramento, na ponta em que a cidade avança sobre o rio da Prata. O desenho de Pedro – o Pedro do Tato – é expressão da substância delicada que tornam únicas as viagens que fazemos em companhia dos filhos