O dia em que minha mãe envelheceu Uma série de quatro textos da jornalista Angélica Santa Cruz sobre o processo de envelhecimento de sua mãe e a constatação de que nem todos seremos idosos à maneira de Jane Fonda. Vivemos mais. Mas vivemos melhor?
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Tudo à vista – um mercado caro e complexo
Nas divisões geracionais inventadas pelos sociólogos e usadas pelo marketing para definir levas de humanos, a minha mãe está entre os veteranos, o pessoal que nasceu entre 1925 e 1944 e antecedeu os baby-boomers, nascidos entre 1944 e 1964. Os dois grupos testemunharam na vida adulta um planeta próspero, uma janela temporal de paz, uma era em que as novas gerações tendiam a ser melhores do que seus pais nos indicadores de sucesso em voga – nível de escolaridade, poder aquisitivo etc. Agora, na velhice, são cobaias da maior expectativa de vida da história da humanidade. E uma das grandes descobertas dessa longa estrada é que viver muito em geral exige inúmeros serviços e enormes recursos.
Os cuidados com a minha mãe levaram nossa família a descobrir a existência de coisas como o IPC-3i, índice que mede a inflação para o consumidor com mais de 60 anos. Nos fizeram virar craques nos planos de descontos das redes de farmácias. Nos obrigaram a descobrir a profusão de lojas especializadas em produtos para os velhos e convalescentes – camas reclináveis, andadores, cadeiras de rodas, fitas e bolas para fisioterapia, colchões infláveis casca de ovo, adaptadores para banheiro, oxímetros, assentos elevados, concentradores, cateter nasal, medidores de glicose e umidificadores estão entre as nossas compras. Produtos grandes, como as camas, são mais alugados do que vendidos – dado que o consumidor-alvo nem sempre tem muito tempo pela frente.
Na velhice, são cobaias da maior expectativa de vida da história da humanidade. E uma das grandes descobertas é que viver muito exige inúmeros serviços e enormes recursos
As compras jamais são parceladas no cartão – pelo mesmo motivo. E são lugares assépticos, uma extensão do ambiente hospitalar. Farejando a oportunidade mercadológica, já vi gente sugerindo uma repaginação para que esses ambientes fiquem mais palatáveis – à maneira do que é feito com os impérios de consumo kids e teen. É uma boa ideia, embora seja difícil imaginar uma cadeira para banho passando por um reposicionamento de marca. Quando se lida com idosos, todo cuidado é pouco – inclusive com cores. Tapetes azuis, por exemplo, podem provocar em quem tem demência o pânico de estar prestes a cair em um precipício – para esse público, tem que ser vermelho. Sob o ponto de vista de uma idosa de classe média – afinal de contas ainda sortuda por estar entre o menos de um terço da população brasileira que ainda tem um plano – o mercado de saúde é caro e complexo.
Nas internações hospitalares, enfermeiros diferentes divididos em turnos entram no quarto com prontuários nas mãos. Se não tiver um acompanhante diligente e com a memória do que foi feito nas horas anteriores, é grande a chance de que eles ofereçam um remédio errado, ou na hora errada. Em cada entrada, é preciso repetir os detalhes sobre o motivo da internação e o histórico de doenças. Fisioterapeutas novatos aparecem para o exercício diário, também desavisados das particularidades da paciente. É uma falta de comunicação cansativa, às vezes arriscada para um idoso sem companhia, mas rotineira inclusive nos bons hospitais.
O sistema de cuidados com a saúde da minha mãe é caro, não a enxerga direito e às vezes não sabe direito o que está fazendo
Liberada das internações, minha mãe fica em home care. Funciona assim: o plano de saúde terceiriza a coordenação geral dos cuidados para uma empresa, que arregimenta os profissionais e quarteiriza a contratação dos produtos que são obrigados a fornecer. Médicos e enfermeiros que fazem o acompanhamento, no geral, são profissionais admiráveis. Mas cada pedido de serviço – para trocar o concentrador, para repor o oxigênio etc – passa por túneis infinitos de telefonemas, informações desencontradas, demoras preocupantes.
Uma vez minha mãe caiu na cozinha. A gente pediu uma ambulância, porque temia levantá-la sem ajuda especializada e causar ou piorar alguma eventual fratura. Nas horas de espera, seguiram-se quase uma dezena de telefonemas atordoantes, de empresas e pessoas diferentes – quase sempre fazendo as mesmas perguntas. Para que ela se mantivesse calma, colocamos almofadas no chão e deitamos ao seu lado. A ambulância enfim chegou e, a caminho do hospital para fazer exames, a jovem paramédica pedia ajuda para avaliar se a oxigenação da minha mãe era suficiente.
O sistema de cuidados com a saúde da minha mãe é caro, não a enxerga direito e às vezes não sabe direito o que está fazendo. Nessa engrenagem, ela chegou perto de virar história por várias vezes – escapou porque tem o acompanhamento de uma geriatra atenta, que a trata há mais de uma década, conhecida e respeitada pelos médicos dos hospitais.
Angélica Santa Cruz dirigiu oito títulos da editora Abril, foi editora-executiva da revista Época e do Diário de São Paulo, repórter especial do Estado de S.Paulo, editora da Veja e chefe de sucursal do site NO.com.