A dona do apego
Aos 42, a designer Cristina Naumovs é daquelas que tem 300 tênis, mil discos e um milhão de amigos
É engraçado ouvir Cristina Naumovs dizer que está trabalhando o desapego. Afinal, a designer, diretora de criação e DJ é também fundadora de um bloco de carnaval chamado Bloco do Apego. Ela conta que está tentando ter menos coisas, mas seu apartamento na avenida São Luís tem paredes cobertas de quadros, há objetos em todo canto, o que sugere que o plano está fracassando.
Mas tudo bem, não se pode ter sucesso em tudo. E Cris tem tido uma certa dose dele na vida. Começou a trabalhar aos 13, em uma locadora, e depois como atendente na clínica de psicologia da mãe de um amigo. Aos 19, estava no suporte técnico do Uol. Foi aí que descobriu que era uma imensa cara de pau. Primeiro resolveu concorrer a uma vaga para estágio em webdesign no festival Mix Brasil sem saber nada do assunto nem estar fazendo curso superior naquele momento (ao todo, foram oito faculdades, todas de humanas, nenhuma concluída). “Saí da entrevista e me matriculei na Escola Panamericana de Arte. Voltei no dia seguinte dizendo que poderia sim ser estagiária”, lembra.
A história se repetiu anos depois, quando foi à Trip para ser editora de arte sem jamais ter ligado na vida um Mac, ferramenta básica de qualquer designer. Foi “desmascarada” nos primeiros dias, mas em um mês dominava a função e conquistava não só o respeito dos colegas como também sua amizade.
Talvez seja às pessoas que cruzam sua vida que Cris dedica seu apego de forma mais desavergonhada. Hoje, aos 42, ela é do tipo que tem 300 tênis, mil discos e um milhão de amigos.
1 | A mesma armação de sempre
Cris Naumovs está sempre de óculos. Foi na escola, ao fazer um teste de visão, que descobriu que era cega do olho direito e que tinha astigmatismo no esquerdo. “Por sorte não fiquei com o olho torto”, conta. Ganhou o primeiro óculos aos nove anos, mas perdeu dois meses depois. Com o dinheiro curto, a mãe disse que não conseguiria financiar uma nova armação. Com isso, só aos 17, ao mudar-se para Minas Gerais para cursar História na Faculdade Federal de Ouro Preto, é que veio o segundo modelo, quando não tinha mais jeito. Desde então, ela não os tira. Nem para dormir. A armação geralmente é discreta, mas elegante, arredondada, e tem lentes um pouco escuras. O estilo se mantém com leves alterações a cada ano (o deste é preto, da marca Moscot).
2 | Você continua a mesma!
No aniversário de três anos, Cristina Naumovs, que morava com a mãe recém-divorciada, uma irmã e um irmão, teve caxumba. A festa foi cancelada, mas a data rendeu a única foto que Cris guarda da infância. “Minha irmã, três anos mais velha, tinha muitas fotos. Eu só tenho essa, mas é uma boa lembrança, de uma infância supersimples, mas que era ótima”, lembra. O curioso, ela aponta, é que o retrato registra que pouca coisa mudou: as roupas são parecidas com as que usa hoje e o cabelo se mantém o mesmo. “Eu vejo a minha cara ainda nessa foto.”
3 | Nunca houve uma mulher como Gilda
“Meu avô por parte de pai veio da Letônia. Quando meu pai era pequeno, minha avó e minha tia morreram em um acidente e meu avô letão casou com a minha avó Gilda, que é essa da foto, sempre muito elegante, enquanto eu era muito maloqueira. Ela me fazia andar com um livro nas pernas e na cabeça, para aprender a andar”, conta Cris sobre a avó de que sente saudades, embora não tenha sido um amor de primeira, mas que surgiu – e cresceu – no decorrer da vida. “As pessoas têm essa coisa que família você ama desde sempre. Mas a verdade é que você vai se apaixonando”, afirma.
Gilda morreu em 2001, aos 74, de um enfisema pulmonar. A foto de biquíni é a única herança que Cris guarda. “Ela era uma mulher muito para frente, moderna. Lá estava ela usando um duas peças na frente do Tietê em 1945.”
4 | O som da música
Louca por música “desde pequena, desde sempre” e DJ há pelo menos duas décadas, Cris Naumovs conheceu Neil Young graças às fichas do rock, da extinta revista Bizz, ainda nos anos 1990. Embora fosse uma grande fã, nunca viu um show do músico norte-americano. Quando David Bowie morreu em 2016, chorou copiosamente e um pânico abateu-se sobre ela: e se Neil Young morresse antes que conseguisse assistir a seu show? Com passagens compradas para ir a um casamento em Portugal, ficou sabendo do festival Desert Trip, que reuniria pesos-pesados do rock com idade acima de 60 anos. “Todos os velhos mais incríveis do mundo estariam juntos: os Rolling Stones,The Who, Roger Walters, Paul McCartney e Neil Young.” A operação pediu planejamento, viajar de Portugal à Califórnia com passaporte brasileiro não foi exatamente fácil, mas valeu: “Foi o show da minha vida. Comprei esse disco na lojinha do festival. Tenho uma tatuagem em que está escrito ‘Heart of Gold’ e ‘Harvest Moon’ foi a música que dancei com a Patricia [Ditolvo, arquiteta] no nosso casamento”.
5 | Uma boa camisa branca
Fielmente adepta a camisetas de malha, um dia Cristina Naumovs sentiu a necessidade de parecer mais adulta e descobriu o poder de uma boa camisa branca. A novidade era grande: para ela, tratava-se de um símbolo forte de sexualidade. “Me descobri lésbica aos 16. Sou de uma geração que não beijava na boca na rua, não pegava na mão, eu era a única da escola. Nunca escondi, mas ser sapatão publicamente é uma coisa recente. E a camisa era uma coisa ‘sapatão’, da Ângela Rorô”, diz. Acontece que a camisa branca lhe caiu muito bem. E, quando foi casar, não pareceu natural usar um vestido, como a outra noiva, Patrícia Ditolvo, preferiu. O único pedido dela era que Cris não usasse preto, cor que virou sua marca. Por sugestão de uma amiga, foi à loja da estilista Gilda Midani. “Encontrei essa camisa branca com uma bola preta, que para mim foi tão simbólica, é como se fosse um peito aberto. Essa camisa tem tudo a ver com isso. Eu só a usei para casar, embora eu a ame, mas separo as roupas de momentos especiais”, diz.
6 | Os meus, os seus, os nossos (cachorros)
Um pote de alumínio mordido explica muito sobre a vida doméstica de Cris Naumovs. Com Patrícia, ela cria hoje cinco cachorros. A mais velha, Gilda, mesmo nome da avó, entrou em sua vida há 19 anos. É uma dachshund cega e surda – além de um pouco banguela, depois de comer parte do pote. Depois veio Chico. Há 14 anos, Cris foi contratada para ser DJ em um casamento e, como parte do pagamento, a noiva sugeriu uma permuta: ela levaria parte em dinheiro, parte em cachorro, um golden retriever. Há cinco anos, as vira-latas de Patricia, Lechuga e Carlota, juntaram-se aos dois, e, há um ano, veio a caçula Berenice.
A família canina funciona em guarda compartilhada. Quando casaram-se há um ano, Cris e Patricia decidiram por manter suas casas e passam os fins de semana juntas, quando unem a cachorrada.
7 | Um perfume de mulher
Se a visão é ruim, o olfato é sensibilíssimo. Ela diz que tem pavor de cheiros mas, paradoxalmente, é afeita a perfume. O mesmo, sempre, há 15 anos. Concentré D’Orange Verte, da Hermès, a acompanha desde o primeiro encontro, na primeira visita a um free shop.
Recentemente, Cris se abriu um pouco mais. Patrícia Ditolvo a convenceu de que cada viagem pode ter um aroma diferente. “Fui para a Itália e comprei um com cheiro de azul e camiseta listrada, como se você tivesse sempre de férias em Veneza”, conta.
8 | Uma espécie de Imelda Marcos dos tênis
“Resolvi parar de me irritar com roupa”, explica Cris sobre como apaixonou-se por tênis. “Eu nunca fui um tamanho de corpo padrão 38 e decidi me divertir com uma coisa que me serve.” Hoje, já são 300 pares, garimpados com sabedoria e a partir de uma decisão: vai nos masculinos. “Eu calço 38. Mas agora só uso 39 porque os modelos mais legais são de 39 a 45 para os caras. Os de mulher são todos rosinha, roxos, com purpurina.”
Primeiro foi capturada pelo apelo visual, mas depois disse que passou a prestar atenção nas histórias dos tênis. Seu favorito hoje é o modelo feito a partir de uma parceria da Converse com o estilista Virgil Abloh, da Off-White e da Louis Vuitton. “Ele é o primeiro estilista negro de uma grande maison. E eu adoro moda e acho que é um assunto pouco valorizado, conta muita história”, diz. Branco, de cano alto, com o solado transparente, ele é o tênis da sorte de Cris, o que ela escolhe quando tem uma reunião ou apresentação importante a fazer. “E eu me considero uma pessoa de muita sorte, estou sempre no lugar certo, na hora certa”, diz.
9 | Carne (e manta) de carnaval
A ideia surgiu em uma reunião de trabalho (na revista “Cosmopolitan”, da editora Abril, então dirigida por Cris): e se fundasse um bloco de carnaval? Resolveu tocar a ideia como projeto pessoal – se desse certo, ótimo; se desse errado, grande mal não seria. Quando recebeu a licença da prefeitura, nem lembrava mais da inscrição, não tinha ideia de como botar o bloco de pé, mas tinha a segurança de um 13º salário que poderia ser investido nele. Chamou o DJ Zé Pedro, amigo de longa data, e com a companheira Patrícia Ditolvo montou a primeira edição do Bloco do Apego em 2015. No ano seguinte, já contava com algum apoio de diferentes marcas, e, em 2017 fechou um patrocínio grande com uma varejista de moda que realizou um sonho antigo: um kaftan, desenhado pela estilista Paula Kim, com 70 mil paetês. “Sou muito básica. mas um dia me apaixonei pelo paetê, que tem o poder do brilho sem transformar em perua louca. Hoje, poderia ter até moletom de paetês.”
10 | Poucos bens, muitos carimbos
A primeira viagem de avião fez aos 25 anos, para o Rio de Janeiro. A primeira internacional, aos 27, para Buenos Aires. Foi presente de uma amiga que não se conformava pela pouca milhagem de Cristina. “Nasceu ali uma vontade de viajar, algo que eu não sinto em relação a ter casa própria ou um carro. Quero conhecer todos os lugares possíveis, ter muitos passaportes e poucos bens”, diz ela, que já tem três com as páginas tomadas por carimbos. Nessa quarentena, uma das maiores angustias é não ter o horizonte de um lugar novo, um cheiro, uma comida que não provou. “Vai passar. Na minha esperança, espero que seja logo.”