Jovens e também evangélicos Uma série de quatro textos da jornalista Débora Aleluia. Ela, que é evangélica, ouviu depoimentos de outros jovens para criar os relatos a seguir. Nessa costura de diferentes histórias e experiências, ela mostra um pouco do que é seguir a religião hoje no Brasil
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Amém na mesa do bar
“Mas vocês são mesmo evangélicos?”, é o que costumam perguntar quando nos conhecem, seja numa festa, na faculdade ou no trabalho, a pergunta quase sempre é carregada de desconfortos, curiosidade ou cobrança. Ser jovem evangélico vem com uma carga de perfeição. Por isso, parei de me apresentar assim.
Religiosamente, quase todo final de semana antes da pandemia, meus amigos e eu íamos ao mesmo restaurante na orla, almoçar juntos depois do culto de domingo, discutir sobre a pregação, recarregar as forças para recomeçar a semana e dividir uma cerveja. Frequentado por dois gatos pingados que, assim como nós, conseguiram entender como chegar no bar com a melhor vista para o marco zero da cidade, o estabelecimento sequer tinha cerveja quando começamos a frequentá-lo. Por insistência dos clientes não adeptos à abstinência, o dono começou a vender uma única marca exclusivamente aos domingos. Evidente foi a sua surpresa quando nós, sentindo-nos em casa, também puxamos um louvorzão no meio do almoço. Foi o caminho que precisávamos para firmar uma amizade com a funcionária do local, também evangélica.
Se há pouco tempo eu decidi parar de me apresentar como “jovem evangélico” foi só por não querer ser reducionista no que me define
No grupo do bar, formado por jovens cristãos dos 19 aos 32 anos, alguém ia começar a se explicar “ah sim, nós somos evangélicos sim, mas…”. Não foi necessário ou ninguém prestou atenção. Há raras vezes, quando existe uma pequena abertura para conhecer a diferença, em que não precisamos nos justificar diante das pessoas, apenas nossas ações bastam. Nesses momentos, eu me sinto em casa ou na minha igreja. É sempre bom habitar espaços nos quais eu não preciso carregar pesos.
Quando decidi me tornar cristão achei, por nunca ter ouvido falar de um crente que bebesse cerveja, que o certo seria deixar a bebida alcóolica de lado. E para algumas pessoas, de fato, é. O domínio próprio e a recusa em manter vícios é uma das virtudes da caminhada cristã e é terreno fértil para a nossa diversidade. Contudo, para mim, em uma mesa rodeada de pessoas que eu amo, cultivando hábitos saudáveis e olhando para o mar, sinto Deus fora do ritual institucionalizado da igreja. Por isso, naquele dia, naturalmente me veio a vontade de louvar uma música gospel tradicional dos anos 1990, de uma época na qual eu nem era cristão ainda.
Quando decidi me tornar cristão achei, por nunca ter ouvido falar de um crente que bebesse cerveja, que o certo seria deixar a bebida alcóolica de lado. E para algumas pessoas, de fato, é
Vocês não acreditariam nas situações improváveis nas quais meus amigos conseguem puxar um louvor. Crescemos todos em contextos bem diferentes, em diversas vertentes do cristianismo; uns conhecem as expressões cristãs por causa da família, a maioria cresceu em ambientes conservadores. Mas todos nós nos unimos hoje porque dividimos a mesma fé e também porque entendemos que em alguns momentos, como quando alguém é contratado em um novo emprego, é preciso agradecer, ou como dizemos louvar. Para nós, o louvor é uma forte expressão de sentimento pela música e em nossos momentos de alegria. Não são os novos louvores do mundo gospel que cantamos, mas os tradicionais, que ouvimos nossos avós, pais e líderes cantarem com tanta fé.
Não é apenas costume, por causa da minha vivência na fé cristã, minhas expressões mais genuínas de gratidão ou concordância enfática são “glória a Deus” e seus derivados. Faz parte de mim. Eu posso citar os momentos mais inusitados em que soltei um “amém” espontaneamente. Depois de ouvir um discurso político, no meio de um show de rap, durante um protesto, enquanto eu ria com amigos. Às vezes sai sem que eu perceba.
Na mesa do bar onde sentamos sempre aos domingos, eu também vivencio a minha fé. Assim como faço em minhas orações, na igreja, nas minhas ações diárias. Eu não deixo de viver a minha vida, vivo com Deus como motivação. No ocidente inteiro tratamos nossa fé como um ritual: vá à igreja, ouça uma pregação, leia a bíblia; mas essa não é uma fórmula que funciona para todos. Quantos de nós conhecemos cristãos que deixaram atividades saudáveis e prazerosas porque alguém disse que deveriam deixá-las de lado? Na igreja, acreditamos tanto que é preciso não banalizar o sagrado que às vezes esquecemos de ter um relacionamento com Ele e visualizar que Ele habita em nós, no outro e no nosso cotidiano.
Como muitos jovens evangélicos que eu conheço dizem: se há pouco tempo eu decidi parar de me apresentar como “jovem evangélico” foi só por não querer ser reducionista no que me define. A fé faz parte da minha identidade, assim como de grande parte da humanidade há milhares de anos. Ao mesmo tempo, eu continuo amando os encontros que “ser evangélico” me proporciona. Por isso eu afirmo a minha diversidade: eu sou negro, jovem, periférico, universitário, evangélico. Não existe o “eu sou isso, mas …” ou “eu sou apenas isso”. Não quero ter que justificar minhas particularidades, meus amigos são os mesmos, a família é a mesma, eu frequento diversos lugares. Sou isso tudo e onde me aceitam todo, eu fico.
As pessoas ouvidas para compor este relato não quiseram ter seus nomes revelados.
Débora Aleluia tem 22 anos, é jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco e “evangélica de berço”. Atualmente ela faz parte da Igreja Mangue, no centro do Recife, e se articula com movimentos sociais ligados à igreja evangélica, como a Escola de Fé e Política Martin Luther King Jr.