Coluna Isabelle Moreira Lima - Se minhas papilas falassem — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Se minhas papilas falassem

Comunicar-se com eficiência é tudo nessa vida. Saber interpretar sensações e relatá-las pode ser um bote salva-vidas — até para comprar uma garrafa de vinho

08 de Julho de 2020

Um dos maiores críticos do vinho da história, o americano Robert Parker acaba de entrar para o hall da fama da revista inglesa Decanter, algo equivalente à calçada de Hollywood onde estrelas de cinema fincam mãos e pés para a eternidade. Polêmico por pontuar vinhos de acordo com seu gosto pessoal, por arranjar briga com quem pensa diferente e por ser responsável por uma longa era de supervalorização dos vinhos ultrapotentes, Parker teve o mérito de transformar a linguagem usada para se descrever a bebida.

Antes dele, críticos eram pouco precisos. Nos anos 1960, o francês André Simon descreveu um Château Margaux com poucos anos de vida como “uma jovem de 15 anos que já é grande artista, deslizando em pontas e descrevendo uma mesura com infantil graciosidade e risonhos olhos azuis”. Oi? O que você espera de uma taça disso aí?

Quando começou a degustar, Parker entendeu que tinha olfato e paladar acuradíssimos — e mais que isso, uma incrível capacidade de foco. Começou a estudar, embora os livros que lesse não fossem de grande ajuda, ao trazer mais detalhes históricos que informações precisas, e resolveu fazer ele mesmo uma newsletter nos anos 1970. Nela, as notas de degustação eram escritas em linguagem clara e direta, diziam exatamente o que uma bebida oferecia e como se diferenciava de outra, e ajudavam a guiar a compra de gente que, como ele, só queria ser feliz com um vinhozinho.

Comunicar-se com eficiência é tudo nessa vida. Saber interpretar sensações e relatá-las pode ser um bote salva-vidas em muitas situações: no trabalho, nas relações de amizade, no amor. Fico aqui martelando que é preciso saber ouvir sua voz interior, saber entender o que se quer, mas é importante também saber relatar isso com precisão. E a precisão, que fique claro, em cada caso é um caso.

Demorei para me entender, para conseguir me ouvir. Falei e escrevi muita abobrinha (e até onde eu sei esse legume não aparece em aroma de vinho). Até que um dia aprendi que as notas de degustação de um podem não ser as notas de outro. Ao ouvir a enóloga Monica Rossetti, gaúcha que fazia os vinhos da Lídio Carraro e hoje está na Itália, entendi que era possível “traduzir” as notas. Monica gostava de abrasileirar a coisa: em vez de dizer que seu rosé de Pinot Noir trazia framboesa, falava de pitanga. Na época achei ousado, mas hoje, acho, abracei a causa.

Quando saíamos e compartilhávamos taças (saudades, 2019), sentíamos aroma e gosto de maquiagem, acetona, sofá, livro antigo

Os vinhos naturais demoraram a me pegar. Provei muito, muitíssimo, e no começo implicava, sentia algo esquisito (ou funky, como dizem os americanos), que docemente traduzi como gosto de “paninho sujo”. Mais tarde, afinei a descrição para “kombucha”, o que faz sentido: pode ser um resquício da fermentação, ao deixar aromas e sabores de leveduras mais evidentes. E aqui, que fique claro: essa nota específica, que não me atrai tanto, é uma questão de gosto e não uma verdade.

Prefiro bebidas mais “limpas”, o que no mundo do vinho pode ser descrito como “franco”, “elegante”, em detrimento dos “rústicos”, um jeito mais gentil de referir-se ao paninho sujo. (E tudo bem se você gosta, mesmo.)

Dei mais um passo à diante da precisão pessoal (ou da loucura, a depender da ótica). Embora não seja a porta-bandeira do vinho natural, comecei a enxergar as qualidades de muitos rótulos, especialmente durante minhas visitas (agora pelo delivery) ao bar Beverino, especializado na vertente e que tem excelente serviço. Com o dono, Bruno Bertoli, travo diálogos surreais e bastante eficientes: “Mas esse é um daqueles de extrema esquerda?”, “Não, não, tá mais pra centro-esquerda mesmo”. Centro-esquerda eu gosto, fica entre a rusticidade — pode ter um quê de terra molhada, por exemplo — e a elegância. Nos entendemos, mas ele acusa: “Seu paladar é de direita”.

Tenho um grupo de degustação formado por amigas que trabalham em diferentes áreas e que têm em comum uma paixão por vinho, formando um painel de não-especialistas informalmente batizado de Cheira-Taça. Com elas, faço exercícios de linguagem eficientes e alegres. Quando saíamos por aí, em bares de vinhos, e compartilhávamos taças (saudades, 2019), sentíamos aroma e gosto de maquiagem, acetona, sofá, livro antigo, azeitona, mar. Hoje, palavras como essas aparecem no nosso grupo de WhatsApp para recomendar ou derrubar algo que provamos.

Mas por que isso é tão importante? Porque, acima de tudo, é divertidíssimo e torna a sua experiência com o vinho mais prazerosa. Segundo porque é um exercício sensorial interessante, que acende a percepção, o cérebro. Terceiro, porque pode ajudá-lo a comprar vinho e se fazer entender na hora de falar com um vendedor.

Há duas semanas, montei uma caixa com a ajuda de uma sommelière da loja Toque de Vinho. Nossa comunicação por WhatsApp foi breve e eficiente. Escolhi rótulos entre R$ 34 e R$ 120 com base em uma pesquisa rápida, mas quis checar uma coisa ou outra com ela. O diálogo seguiu com cerca de 13 adjetivos (rústico, fermentado, elegante, redondo, defumado, macio, fácil, cítrico, leve, terroso, encorpado, tchans, integrado). Saí com oito excelentes rótulos, sem que meu bolso tenha sentido tanto, e, com eles, tenho exercitado olfato, papilas e, principalmente, léxico desde então. Em breve, espero, esses adjetivos devem se multiplicar.

SACA ESSA ROLHA

FORME VOCABULÁRIO
O português Niepoort Dão Rótulo Tinto 2016 apresenta tantas, mas tantas possibilidades que você pode se confundir. Minha dica, abra logo uma garrafa, sirva uma taça, e cheire quantas vezes for possível. Em cada uma delas, anote o que sente. São infinitas as notas. É um deleite aos que estão interessados em exercitar o olfato. E é também uma ótima indicação para os fãs de Pinot Noir, de tão lisinho que é na boca. O mesmo exercício pode ser feito com o delicioso branco espanhol Sol Tardana 2019, que tem aromas de maçã verde e salinidade no paladar, mas tem muito, muito mais também. Deixo pra você descobrir.

DESBRAVE ALGO NOVO
O Grolleau Blanc é meio parecido com vinhos que você já provou — pode lembrar um maracujá de Sauvignon Blanc, ou ter uma coisa meio perfume da Semillón –, mas é diferente. E vai te transformar numa espécie de arqueólogo, quer dizer, isso se você não enxugá-lo rapidamente, porque é um desses vinhos de sede, facílimo de beber. Natural e elegante.

SEJA DESPRETENSIOSO
Esfriou, você quer beber na quarta-feira, mas só uma tacinha enquanto faz o jantar, vai nesse Seival Miolo Tempranillo, que é gostoso, fácil e baratex. Mas atenção: é ideal para quem gosta de uma pontinha de doçura.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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