Se me vi sozinha, por muitas vezes estive comigo mesma e, portanto, muito bem acompanhada
O amor que é uma promessa, talvez seja o maior sonho da vida. Por mais que eu tente não pensar, tudo sempre me levou a ele — uma música, um filme, uma pintura, um poema num livro aberto aleatoriamente. Parece ser involuntário esse movimento. Vivi ao redor de sua ideia e acredito que não tenha acontecido apenas comigo. A questão é: o que seria o amor? Ligação cósmica, acontecimento, escolha, destino, contrato social, meta de vida, morte? Eu o questiono todos os dias. Numa hora acredito no poder de sua existência, percebo que é filtro e lente. O maior instrumento de revolução e evolução, ato político e tecnologia ancestral. A maior viagem; outra hora duvido que seja real e vejo nele apenas invenção e farsa. Fingindo proteção e felicidade, oprime. Um rio manso que se torna enchente. Afaga, afoga e com a mesma mão, quando diz que liberta, também põe correntes.
Bom, fui mais uma criança criada como parda, tentando me inserir numa realidade que não me pertencia. Olhava para os lados e só havia desprezo. Não era considerada bonita, não era magra, não era branca. Era gorda, menina preta e pobre. Ninguém me avisou que apanharia por isso, ninguém me avisou que não seria aceita nem amada por isso. Sonhei em caber no perfil “mulata exportação”, em ser desejada, mas… nada. Esse corpo nunca chegou e sem ele era difícil viver um flerte. O amor me foi negado várias e várias vezes. Uma vida acumulando expectativas frustradas. Também fui criada emocionalmente pelo mundo para sonhar com o amor perfeito, para conquistar, servir, agradar e nunca, nunca perder para outra mulher o objeto de desejo conquistado a duras penas. Que mundo cruel!
Lembro, ainda no ensino fundamental aprendi que “ser humano é aquele que nasce, cresce, reproduz e morre”. Essa era a síntese da nossa vida e o auge, “naturalmente”, era o momento da reprodução. Mais dois sonhos para colecionar: ter filhos e constituir família. Como construir isso sem conseguir viver um amor, sabendo, inclusive, que nosso corpo vem com prazo de validade, que o tempo urge enquanto a gente definha nessa busca e espera? O amor é então sofrimento? Eu, uma mulher que nunca tinha sido escolhida me tornei amargura, insegurança e, com autoestima abalada, fui até o fundo do poço. Não passava na frente de nenhum espelho. O amor, ou a falta dele, anulou aos poucos minha vitalidade e existência até que me questionei “por quê não sou digna de viver o amor, por quê não fui abençoada com a beleza que lhe atrai?”
O autoamor, que também nos foi negado, é o fundamento básico de nossa saúde emocional
Historicamente, às mulheres pretas foram reservados papéis de trabalho e subalternidade. Fomos invisibilizadas e violentadas, destituídas de nossa humanidade e automaticamente também do direito de amar e de sermos amadas, de sermos vistas e escolhidas, dignas de receber afeto. Só entendi isso depois de viver muitas violências. De encarar o meu corpo e enxergar nele tantas agressões e apagamentos. De ligar a TV e assistir no telejornal matérias sobre mulheres que foram espancadas, que morreram pelas mãos do “amor” e tiveram seus corpos abandonados. O amor é isso que maltrata? Ciúme, briga, vingança? Tantas músicas da MPB cantam esses amores, afirmando “que todo grande amor só é bem grande se for triste”.
Nesse jogo no amor sabemos quem mata e quem morre, quem ama e não é amada. Seria o amor uma armadilha do patriarcado que mantém nossa vida em sua função, uma estratégia de domínio sexista que nos inferioriza enquanto buscamos a promessa de nossa felicidade em seus braços, quando não somos nem uma hipótese de escolha? Será que essa busca está realmente ligada a outra pessoa ou está dentro de nós?
bell hooks em “Vivendo de Amor” diz que trocar a crítica negativa pelo reconhecimento positivo é o primeiro passo para o cultivo do amor. Se enxergar e amar primeiramente o que vê em si, reconhecendo a própria beleza. O autoamor, que também nos foi negado, é o fundamento básico de nossa saúde emocional. Ter uma relação saudável de afeto com nós mesmas, inclusive com a nossa aparência, é caminhar para longe das ilusões do ideal de amor romântico, que nos impõe uma necessidade de viver em “pares” para que possamos nos sentir completas; que impõe a obrigatoriedade de um relacionamento heteronormativo, porque enquanto gênero feminino construído não somos autossuficientes. A imposição desse modelo de amor eurocêntrico, pautado nas necessidades políticas, sociais, econômicas e todos os seus padrões; a colonização do afeto, seu caráter excludente, tudo é uma agressão.
Precisei me reconciliar comigo e com meu amor interior há tanto negligenciado pra desfazer silêncios e fios da teia da solidão, onde há tanto tempo fazemos morada. Se me vi sozinha, por muitas vezes estive comigo mesma e, portanto, muito bem acompanhada.
* Luna Vitroliera é escritora, performer, atriz, cantora e compositora, além de mestra em Teoria da Literatura pela UFPE. É produtora dos projetos Estados em poesia e Mulheres de Repente. Seu livro “Aquenda – O Amor Às Vezes É Isso” (Livre, 2018) foi finalista do Jabuti 2019
Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”
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