Algum tempo atrás fui convidado pela redação da Gama a fazer um test-drive muito especial: durante três semanas eu deveria me alimentar apenas com a comida que eu mesmo preparasse nas três refeições do dia (ou cinco né, contandos os lanchinhos). Nada de jantar surpresa com amigos, de comer qualquer coisa rapidinha ali (mesmo porque isso não é muito do meu feitio), muito menos sucumbir ao cupom oportunista do delivery (essa sim mais a minha cara).
Naquele contexto eu estava querendo ficar mais regrado no bolso e mais saudável no corpo. Mas já era um movimento que fazia parte da minha vida: nos últimos anos os exercícios físicos e alimentação viraram um debate intermitente — nada diferente de metade da humanidade. Fui a um nutricionista esportivo e me vi fazendo infinitas refeições ao longo do dia, consumindo doses e doses de castanha-do-pará e de ômega 3; aderi à dieta Keto, a famosa cetogênica, rica em gorduras; aprendi a amar musculação (juro, gente) e cheguei ao ponto de ler artigos científicos sobre suplementação. Tudo isso fez não só com que meu corpo mudasse drasticamente mas também com que eu me cansasse de tanta restrição e relaxasse.
Cheguei ao final de 2018 um pouco descontrolado, desregrado – tanto com as finanças quanto com a disciplina alimentar. A premissa de cozinhar toda minha comida significava também reorientar minhas prioridades. Como bônus do desafio, resolvi cortar o álcool, o açúcar e a farinha branca e reduzir os carboidratos. Afinal, para que fazer algo difícil se podemos optar por fazer algo MUITO difícil, não é mesmo?
Mas o contexto agora é outro. A pandemia do COVID-19 e a necessidade do distanciamento social (mais para físico na verdade) expandiu esse experimento para muitos de nós. Isolados em nossas casas — alguns com a família, “roommates” ou sozinhos — muitos de nós agora temos que cozinhar o próprio alimento em todas as refeições. Pensei então que os aprendizados que tive durante esse processo autoimposto podem ajudar neste momento de obrigatoriedade sanitária.
Alimentação dá trabalho. Pergunte a qualquer chef, a qualquer dono ou dona de casa. É um processo com muitas etapas, um job, um frila eterno
Recém-chegado de férias, reorganizei a cozinha, visitei dois supermercados e dois sacolões, pensei em um cardápio inicial e me entreguei ao desafio. Como é óbvio para qualquer pessoa que já fez dieta, as primeiras semanas foram as mais desafiadoras. Comecei desobedecendo as próprias regras: logo no primeiro dia, depois de um fabuloso café da manhã em casa, sucumbi aos apelos de uma colega de trabalho e abandonei a marmita para acompanhá-la em um almoço.
Na segunda noite, mais uma derrapada; em um encontro, enquanto meu date já tomava a terceira long neck, eu bebericava um mocktail de chá-mate com mel e capim-santo. Preferia tomar um gim-tônica? Com certeza. Me senti um alienígena? Sim. Entre conversas sem jeito e flertes promissores, ele pediu um sanduíche. Na tentativa de me sentir menos bizarro, não resisti e pedi uma salada, enquanto meu coração se apertava pensando nos lindos legumes grelhados com ervas, no frango preparado com alecrim, alho e limão, em todos os potes de vidro que me aguardavam na geladeira. Eles foram traídos para que a imagem relaxado-casual se sobressaísse à de disciplinado-porém-maluco.
Na segunda semana, a coisa ficou mais fácil. Convidava os amigos para jantar em casa e invariavelmente cozinhava um tiquinho a mais para abastecer a marmita do dia seguinte; nela figuravam receitas como chilli com lentilhas e frango masala. Fiquei orgulhoso de seguir em frente sem incidentes e de conseguir manter minha rotina – a manhã de sábado era para as compras; a noite de segunda, para planejar, preparar, porcionar.
Esse foi o primeiro dos aprendizados: alimentação dá trabalho. Pergunte a qualquer chef, a qualquer dono ou dona de casa. É um processo com muitas, mas muitas etapas, um job, um frila eterno. Tem que planejar o cardápio, ir às compras, tomar decisões na gôndola, cozinhar, combinar. E só depois é que vem a parte boa: comer.
A pandemia do COVID-19 expandiu esse experimento para muitos de nós. Isolados em nossas casas temos que cozinhar em todas as refeições
Até o fim do desafio, o mais difícil foi fugir dos atalhos: “vou cozinhar uma batata-doce só com sal e pronto”; “vou grelhar esse peito de frango rapidão”; “só uma alface picada com tomate”. É aí, meu querido, que mora o perigo, especialmente para quem gosta de comer e enxerga comida como prazer, como eu. O risco de simplificar esse prazer é alçar-se numa missão fadada ao fracasso; afinal, se você não aguenta mais um peito de frango sem sabor, acaba pedindo uma pizza. Cozinhar dá trabalho, sim, mas é um trabalho de amor – seja o que sentimos ao ver os amigos em torno da mesa, se deliciando silenciosamente, ou o amor-próprio depositado em cada marmitinha.
Apesar das desventuras, o desafio reconstruiu minha relação com a comida, que havia sido prejudicada pela rotina. Há quem diga que mais importantes do que o sabor são a circunstância e a companhia, que têm forte impacto em nossas experiências com comida. Lembrar de um sabor (ou querer senti-lo mais uma vez) seria, na verdade, reviver uma memória afetuosa como um churrasco com amigos, um jantar com um boy especial. Descontextualizar essas refeições de suas experiências é padecer na frustração. Portanto, não se deve banalizar tais momentos, mas pulverizá-los ao longo da vida. Se por um lado tudo em demasia perde a graça e pode fazer mal, por outro é fundamental inserir um pouco de magia no cotidiano.
Meses depois, ficou mais fácil dizer não ao aplicativo de delivery e me jogar na geladeira e nas panelas. Segui convidando amigos para jantar, alternando grupos e misturando círculos. Celebro as semanas que passei só à base de marmita. E escolho o que vou cozinhar com muito mais carinho, com base nas experiências que quero ter e nas memórias que quero manter. E, hoje, no contexto de pandemia e isolamento, planejar as refeições, pesquisar, inventar e adaptar receitas se tornou um excelente passatempo e distração. Aplaca a ansiedade e preenche o tempo me dando um sentido de controle e orientação — estratégias indicadas por psicólogos e experts em gestão de crise para atravessarmos estes tempos incertos.
Guilherme Falcão é designer e editor do Nexo, pós-graduado em crítica e curadoria de arte pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor da Escola Britânica de Artes Criativas (Ebac)