Viagem ao centro da taça — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Viagem ao centro da taça

Quando há limites para todos os lados, pode ser hora de olhar para dentro do copo – e de si

06 de Maio de 2020

Em maio de 2020, os sentidos andam prejudicados. A Covid, essa doença terrível, além de tirar vidas e fazer sofrer muito seus infectados, tem roubado sensações até de quem não contraiu o vírus. Com o isolamento social, o tato nos foi temporariamente sequestrado. Não podemos beijar e abraçar, não podemos tocar em nada impunemente. E, se tocarmos, haja álcool em gel.

Longe dos amigos, dos lugares que frequentávamos, a experiência da audição também mudou. Claro, ainda pode-se ouvir música, e ficam ainda mais impactantes aquelas produzidas com arranjos cheios, como era a música popular brasileira dos anos 1970, o rock opera do Queen, ou um hip hop religioso de Kanye West. Mas sons cuja importância emocional eu jamais tinha notado começaram a me fazer falta: o tilintar de pratos, talheres e copos de uma mesa cheia; o burburinho de bares; o som animado de uma festa; a música em um show ao vivo (ainda que sempre teremos as lives); as conversas entreouvidas em parques, museus, qualquer espaço público.

Com o confinamento, a visão ficou especialmente limitada. Há um mês e meio, os que puderam se proteger em casa veem as mesmas paredes, as mesmas cores, o mesmo tudo; não é fácil, cansa. Do meu apartamento, onde as janelas dão para outras janelas, não vejo o céu, as árvores, nem mesmo o asfalto. Talvez por isso, tenho notado no meu exercício semanal de lavanderia que a roupa suja da minha família nunca foi tão colorida; está carnavalesca até. Mecanismos inconscientes de sobrevivência, tenho ouvido por aí.

A doença é particularmente cruel com o olfato e o paladar e é por isso que, aos que estão saudáveis, proponho uma celebração desses dois

Mas nada é tão ruim que não possa piorar. Para além das restrições sensoriais do isolamento, a doença é particularmente cruel com o olfato e o paladar, que segundo relatos desaparecem como se jamais tivessem existido. E é por isso que, aos que estão saudáveis, proponho aqui uma celebração desses dois.

Vinho é para beber, mas alguns são para guardar antes que se beba. Com o tempo, ganham complexidade, amadurecem e ganham novas notas, as chamadas terciárias, que diferente das primárias, características da fruta, e das secundárias, advindas do processo de vinificação, vêm da evolução. Nem todo vinho é assim, alguns têm que ser consumidos quando jovens, mas aqueles feitos com mais cuidado, com uvas selecionadas, de parcelas de vinhedos especiais, com usos específicos de madeira, fazem parte do time.

Esses vinhos, acredito, são especiais para tempos como o que vivemos justamente porque oferecem muitas possibilidades sensoriais. Se provamos logo que abrimos a garrafa, são uma coisa; meia hora depois, outra. Se decantamos, podem apresentar aromas que não sonhávamos, e a cada nova girada de taça um novo elemento (terra molhada, erva seca, cogumelo, chocolate, café) vêm à tona. Na temperatura ideal e no tempo certo, podem ser o céu. Com a comida ideal, o nirvana. Minha pequena adega, em cujo topo guardo os vinhos com mais potencial de envelhecimento, reservados para uma data especial, ultimamente se transformou numa espécie de pirâmide. E, sem penas ou arrependimentos, me felicito por ter encontrado o sentido dessas garrafas: criar experiências memoráveis, mesmo em meio a uma temporada emocionalmente desafiadora, para usar um eufemismo elegante.

Há uma outra categoria, que pode abraçar também evoluídos, chamada de vinho de meditação. No sentido estrito, o termo se refere aos vinhos que dispensam comida e são ricos, cheios, geralmente fortificados (que na vinificação recebem um tanto de aguardente vínica, o que interrompe a fermentação e os deixa mais alcoólicos e, em muitos casos, doces). Entre eles, Porto, Jerez, Madeira e rótulos icônicos como o Banyuls, um clássico da região do Rhône, na França. Com a chegada das temperaturas mais baixas nas próximas semanas, indico essas bebidas e o exercício espiritual contemplativo que oferecem. Servidos à temperatura correta (sempre mais resfriados que os tintos, entre 10° e 13°), levam a reflexões e descobertas: o mel do Porto Tawny; a fruta suculenta do Porto Ruby; o seixo salino de qualquer praia que se sente falta que está no Jerez Fino.

Vinhos de meditação levam a reflexões e descobertas: o mel do Porto Tawny; o seixo salino da praia que se sente falta no Jerez Fino

Ao abrir uma garrafa dessas, resolve-se ainda outro problema, dar sentido ao ato de se beber sozinho. Se um vinho existe para a comunhão, para ser compartilhado com quem se gosta, em situações agradáveis, dado seu incrível poder de torná-las ainda mais prazerosas, um vinho evoluído ou de meditação pode ser sorvido como uma experiência sensorial, seja ela intelectual, científica ou prazerosa. Ou ainda – por que não? – as três opções em uma única degustação.

Eu tenho experimentado mais e mais rótulos e essas taças têm, de alguma maneira, me salvado, salvado alguns dos meus dias, me emocionado, me proporcionado viagens. Se não para fora, para dentro delas e de mim mesma.

Saca essa rolha

PARA APRENDER A MEDITAR COM A TAÇA

Se você nunca provou um Jerez, vá nele, é a coisa mais diferente que existe. Especialmente os mais secos, que trazem notas de frutas secas no nariz e na boca são salgados, lembram azeitonas e o mar. Se quiser gastar pouco, vá no Tio Pepe Fino. Se animar, prove El Maestro Sierra Jerez Fino.

PARA DESVENDAR OS MISTÉRIOS DA EVOLUÇÃO

Soalheiro Alvarinho 2017, da subregião de Monção e Melgaço, só tem três anos de garrafa e ainda assim mostra aromas como mel, cortiça, resina, pera e um toque mineral, um por vez. O Vignobles Mayard Châteauneuf-du-Pape La Crau de ma Mère 2012 vem com fruta em geleia, chocolate, café e muitas especiarias.

PARA BEBER OUVINDO ‘JESUS IS KING’

Agora esqueça tudo o que eu disse e mergulhe nesse vinho de sede, baratinho, que pode ajudar a deixar a faxina mais fácil, o jantar do meio da semana mais gostoso, ou dar a ilusão de que a piscina está logo ali. O português Porta 6 Branco é vendido em supermercado, é fresco, cítrico e floral, faz salivar bem. É superagradável e não vai roubar a atenção que você precisa pra ouvir esse álbum.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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