Rainha indestrutível — Gama Revista
COLUNA

Maria Homem

Rainha indestrutível

Alice Caymmi lança a versão deluxe de “Rainha dos Raios”, que completa dez anos. Um disco de amor em seu sentido pleno, potência máxima de vida e delírio transcendental

05 de Setembro de 2024

Desta vez escrevo a coluna da cidade de Curitiba. Vim participar de um congresso de Filosofia e Psicanálise, com muita gente fina e sincera quebrando a cabeça para desenhar diálogos possíveis e efetivos com o novo mundo que se aproxima. Como manter um espaço de escuta e potência como o território analítico?

Essa poderia parecer uma pergunta bizantina, um pouco corporativista, de uma classe. Mas quando a gente pensa que boa parte do mundo não quer escutar nada e é craque em lacração e na violência que muitas vezes isso implica, aí a gente entende a aridez da tarefa. Na minha cidade natal, por exemplo, que é São Paulo, o terceiro maior orçamento do país, atrás somente da União e do estado de São Paulo, aparecem agora alguns candidatos que você se pergunta: “Afinal, como é possível que nossas mentes estejam sendo condicionadas a se esforçar tanto para acreditar em uma teologia coach de superação individualista?”

Claro que você nem pergunta como é que um estádio de 15 mil pessoas pode chorar e crer que cada um dos presentes vai alcançar a vitória que merece e pela qual vai trabalhar duro e simultaneamente a cada uma das outras 14.999. Fica aí o enigma matemático para a gente resolver. Não dá pra perceber que é mentira? Não, no momento não dá não: a vida está tão ruim e miserável que eu tenho que me agarrar em qualquer conto da Carochinha.

Pois então, como forma de resistência radical, escrevo sobre a psicanálise, que sobrevive e instaura. Sobrevive e diz a que veio, recebendo tudo o que brota do redemoinho pulsional criativo e por vezes assustador, as representações mais autorais e inéditas, as ideias por vezes não ainda compreendidas e atacadas.

E escrevo também sobre a arte, que por vezes é resistência e força, potência e fúria. Como o show de Alice Caymmi no Teatro Oficina, que lança a versão deluxe do seu “Rainha dos Raios”, que comemora 10 anos. Já faço um disclaimer inicial confessando que sou suspeita, pois aceitei o convite para fazer o texto dessa nova edição do álbum. Conversei com Alice, ouvi sua história e o disco com a atenção plena que só pode existir na escuta sem medo do outro. “Rainha dos Raios” é um disco de amor.

Que mesmo em meio às guerras mais ardilosas, não deixemos de nos expressar.

E não só no sentido daquilo que atormenta as nossas vidas. Amor em seu sentido pleno, potência máxima de vida e delírio transcendental: preciso transbordar para fora da prisão do meu ser. Quer a todo custo transgredir o impossível e realizar o que nem Michelangelo ousou na arquetípica imagem da criação do Homem por Deus na Capela Sistina. Quero encostar, grudar, me misturar com o outro, de novo e de novo. E assim Alice escreve e canta Eros, em todos os formatos e estilos, do trágico ao cômico, da balada ao pop eletronizado, do chic ao brega. Obra erótica porque, afinal, a rosa do vento não vibra sem amor.

Nada virá sem amor. Abre no gozo puro do nada, diante do Outro soberano e voraz: Ele quer me destruir. Eu não sou ninguém. O Outro que me engole ou para dentro de onde me deixo engolir. Me abrigo na sua pele e te coloco como bússola, norte, bandeira, morada, tudo. Dizem que sou louca. Tua pele é minha morada. Teu amor é minha bandeira. Te sigo pela vida inteira.

Mas, como diria Lacan, não vai funcionar, simplesmente porque “a relação sexual não existe”, e a completude está fadada ao fracasso. Mas a voz lírica da Rainha não se deixa vencer:

Às vezes penso em te esquecer, mas eu acho que isso não é a solução. A solução é você voltar e nós dois juntos nos amar. Não tem ninguém que te ame assim. A solução, baby, é você acabar com a resistência e compreender de uma vez por todas que nós dois faremos o Um. E se por acaso você não quiser, não tem problema, entenda: eu carrego o fardo e sustento a parada: o meu amor é o maior de todos. Invencível.

No entanto, em algum momento, vem surgindo uma outra voz narrativa. É aquela que pode
contrapor a letra à ironia da linguagem. Sou rebelde porque nunca me trataram com amor. A
releitura na distorção levemente eletrônica vai penetrando a balada e, calmamente, anuncia: já
não é bem assim. Tenho mais consciência e algum distanciamento dessa que derrete.

Distanciamento que se explicita: Meu mundo caiu. E me fez ficar assim. Mas… a mulher
contemporânea sabe: se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar. E ela até canta a voz de um homem, um mestre e, assim fazendo, desenha o avesso do ser mulher via visão do outro: só tenho inveja da longevidade dos orgamos múltiplos.

E assim nossa Mulher Rainha vai jogando seus raios ao mesmo tempo que recolhe seu ser. Ela vai se integrando, se fazendo Una. Você foi embora; me deu um fora. Espero que nunca mais aconteça isso comigo. Meu recado é esse: eu não preciso de você. O tom de balada irônica já diz e desdiz: o Eu não precisa mais do fora de si. Eu sou mais eu. Eu sou Rainha dos Raios. Sou Senhora do mundo dentro de mim. Muito além da Rainha de Copas da outra Alice, a do País das Maravilhas que traz seu vermelho histriônico e tirânico, Rainha Alice fecha a jornada dizendo, simplesmente: Lips so red, World so wide.Diante do vasto, vasto mundo, a boca vermelha que grita. E canta.

Que mesmo em meio às guerras mais ardilosas, não deixemos de nos expressar. Que a gente
não perca a voz e continue a cantar sobre o abismo. Assim disse Nietzsche, e diria Freud.
Sempre, mesmo o mundo se espatifando à nossa volta.

Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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