Casamento aberto: não há infidelidade, mas há segredos — Uma investigação — Gama Revista

Casamento Aberto O relato de uma mulher e suas reflexões sobre o casamento (feliz) que aos 15 anos ganhou a possibilidade de novos encontros

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Não há infidelidade, mas há segredos

18 de Abril de 2020

Vamos desde já tirar da conversa um clichê chatíssimo: não, eu e meu marido não decidimos abrir o relacionamento como forma de escapar da rotina que livros, revistas e sites teimam em dizer que se abate sobre todos os casais. Nessa década e meia que passamos juntos, fomos a quatro continentes, mergulhamos em diferentes oceanos, trocamos de carreira, de cidade, vimos incontáveis peças, shows e filmes, dançamos, experimentamos drogas, enchemos a cara etc. etc. etc. Nos entediamos de vez em quando? Certamente. Mas a rotina – aquela rotina –, essa não chegou.

Isso não quer dizer que a decisão não tenha a ver com o tempo de vida do nosso relacionamento. Foi preciso estabelecer uma cumplicidade profunda, uma forma de carinho que não depende da reafirmação explícita e constante; sobretudo, foi preciso viver uma enormidade de coisas juntos pra saber que o que sentimos não depende da presença absoluta do outro. Um dia desses, conheci um cara que, divorciado havia pouco tempo, me disse que nunca mais entraria num relacionamento monogâmico – o que não o impediu de ficar cheio de pudores comigo por eu ser casada. Ah, os homens e suas falsas simetrias. De qualquer modo, não acredito em nunca mais, e, especialmente, devo admitir que me parece estranho tomar essa decisão de partida, com alguém junto a quem você ainda tem tanto a descobrir. (Mas acredito ainda menos em prescrever regras, então boa sorte pra ele.)

Cada um estabelece suas regras, que podem consistir em não estabelecê-las

Minha recusa em admitir o clichê da rotina também não ignora que há um fator relativo à idade na decisão. Seria ela fruto de uma crise dos 40? Escolho uma interpretação mais generosa e alegre. Todos os contemporâneos à gente estão, por um ou outro caminho, se aventurando em novas experiências. Tem aquela que se dedicou loucamente à carreira nos últimos vinte anos e agora se sente segura o suficiente pra diminuir a marcha e se apaixonar. Tem o casal que, entre idas e vindas, finalmente admitiu que a coisa é pra valer e acabou de entrar na fila da adoção. Tem o amigo que reencontrou um amor de juventude e se separou da mulher. O que eu vejo é um monte de gente que não precisa mais provar tantas coisas e que está olhando pra si próprio e perguntando: “O que eu quero agora?”.

E eu queria abrir o casamento. Por quê? Essa pergunta leva a outro lugar-comum dos debates sobre relacionamentos não monogâmicos. Dê uma pesquisada on-line e o que mais você vai encontrar são listas de “o que fazer”, “o que evitar” e afins. E onipresente está a recomendação: estabeleça detalhadamente as regras do jogo. Na minha opinião, uma falácia; e mais: uma falácia burocrática. Cada um estabelece suas regras, que podem consistir em não estabelecê-las.

Há casais que se jogam numa corrida maluca para não ficar atrás do outro, meio gincana do desejo. Credo

E o que isso tem a ver com a pergunta a respeito dos meus motivos pra querer abrir o casamento? Bom, eu e meu marido entendemos que o nosso relacionamento não deveria se sustentar sobre uma proibição de partida, essa coisa besta de não beijar ou transar com outra pessoa, sob o risco de se sentir a mais traidora das mortais. Se o fundamento é esse, outros dele decorrem. Ninguém tá aqui procurando uma grama mais verde, ou um novo relacionamento pra substituir o nosso. Estamos só admitindo que o mundo é horrível e lindo ao mesmo tempo, e, pasmem, tem muita gente legal e interessante nele, e que encontros justificam a existência. Então não faz sentido elucubrar muito além disso. Ninguém vai entrar no Tinder ou flertar desesperadamente na fila do supermercado. Não uma questão de procurar, mas estar onde se está, plenamente.

Então, sim, estabelecemos uma regra. Duas, na verdade. Decidimos que não contaríamos ou perguntaríamos ao outro sobre o que está fazendo quando está só. É, de cara, uma estratégia pra evitar competições – já ouvi histórias horrorosas sobre casais que se jogam numa corrida maluca pra não ficar atrás do outro, um lance meio gincana do desejo. Credo.

Mas há também aqui uma implicação ética. Quem já leu sobre a relação entre a Simone de Beauvoir e o Jean-Paul Sartre fica em choque com o arranjo deles: não bastava seduzir “moças afogadas” (termo dele, pra definir as jovens que o atraíam, instáveis, e dependentes, financeiramente deles). Não bastava também mentir a torto e a direito pra conquistá-las (quem nunca?). O que me dá náuseas é o fato de que um contava tudo ao outro, em cartas tão detalhadas quanto maldosas.

Em relação a uma das moças, por exemplo, Beauvoir conta em uma série de cartas o processo de desencantamento. O relato começa com uma reclamação quanto a Bianca Bienenfeld ser “só uma garotinha, meio perdida, patética demais”, que “nem desconfia disso, está no sétimo céu comigo”. Dois meses depois, ela escreve que as duas tiveram “uma noite apaixonada” e que ela, Simone, estava “mais envolvida do que o usual, com a ideia vaga e abominável de que deveria ao menos ‘me aproveitar’ do corpo dela”. E o pior: logo depois ela reconhece que não se pergunta: “Será que agi bem?” e, sim, “O que ele [Sartre] vai pensar de mim?”. Ai, a náusea!

A comparação de tamanhos e habilidades também mora sozinha na minha cabeça, e essa é boa parte da graça

Por que tirar do baú do século XX essa história decadente de amor? Porque ela representa o egocentrismo e a falta de generosidade que eu quero evitar. Afinal, é como se o casamento dos dois fosse o mais fechado do mundo, e eles simplesmente transassem com outras pessoas a fim de satisfazer os desejos voyeurísticos um do outro. Nenhum interesse em encontrar – verdadeiramente encontrar – pessoas interessantes, redescobrir a si próprio por outro olhar, saber mais do mundo. Então pra quê? Pra escrever cartas e inventar uma história. A cada um, sua emoção… Mas que deprimente, não?

De minha boca jamais sairá um comentário negativo a respeito de ninguém, sobretudo no terreno sexual; jamais relatei episódios de, digamos, insucesso de homem nenhum, mesmo de ex-namorados, e não vai ser agora que vou começar. A comparação de tamanhos e habilidades também mora sozinha na minha cabeça, e essa é boa parte da graça. Afinal, não existe infidelidade em um casamento aberto – mas existem segredos. E são os segredos (os meus e os dele) que fazem com que toda noite eu encontre uma pessoa que me é tão íntima quanto um indissolúvel mistério.

*Para preservar esse casamento feliz, a autora preferiu não se identificar • • • • • • • •  A imagem que ilustra essa matéria é uma cortesia do artista Marcelo Cipis e Galeria Bergamin e Gomide – Imagem Para Vaso Grego Contemporâneo 10 (da série Drops / from the Drops series), 2019. Acrílica sobre tela / Acrylic on canvas. 11 3/4 x 11 3/4 in. (30 x 30 cm). MCP-0123. / Fotografia: Ding Musa

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