Coluna da Marilene Felinto: Resenha de “A Fuga da Sibéria”, de Liev Trótski — Gama Revista
COLUNA

Marilene Felinto

Resenha de “A Fuga da Sibéria”, de Liev Trótski

Trótski surpreende como tão bom escritor de uma narrativa de viagem entre literária e sociológica, já não fosse ele consagrado intelectual marxista de publicações diversas ao longo da vida

24 de Novembro de 2023

Símbolo de resistência, coerência e, até hoje, encarnação de uma realização possível da utopia, assim Leonardo Padura descreve o Liev Trótski (1879-1940) que ressurge na publicação deste “A Fuga da Sibéria”, livro de uma viagem forçada, escrito pelo então prisioneiro político russo em 1907.
Livro em que se revive a paisagem da Sibéria, bela e inumana, como destino do exílio imposto a importantes dissidentes políticos russos, como Dostoiévski, por exemplo, retratada agora pelo olhar do líder revolucionário socialista.

E Trótski surpreende como tão bom escritor de uma narrativa de viagem entre literária e sociológica, já não fosse ele consagrado intelectual marxista de publicações diversas ao longo da vida.
“Fuga da Sibéria” (Ubu, 2023) é o relato pessoal dele sobre a fuga que empreendeu, em 1907, ao conseguir escapar da escolta militar tsarista que o conduzia, e a outros presos políticos, ao degredo perpétuo em uma colônia de trabalhos forçados no Círculo Polar Ártico.

Aquela seria a segunda prisão e deportação de Trótski para a Sibéria, acusado de atividades revolucionárias pelo império russo. A primeira vez ocorreu em 1989, quando foi condenado a quatro anos de cárcere. Fugiu em 1902 e foi se exilar na Europa com passaporte falso, identificado como Trótski, pseudônimo que adotaria dali por diante. Seu nome verdadeiro era Liev Davidovitch Bronstein (também conhecido por “Leon”, em vez de “Liev”).

A condenação que deu origem a este “Fuga da Sibéria” foi decorrência de sua participação ativa na Revolução de 1905, mobilização popular de camponeses e trabalhadores urbanos da Rússia que reivindicava liberdade, justiça social e econômica, em protesto contra o absolutismo do reinado de Nicolau II. Gestava-se ali a Revolução Socialista que eclodiria em 1917, da qual Trótski, ao lado de Lenin (1870-1924), seria figura central.

Na sua segunda detenção, em 1905, Trótski passou dois anos na “prisão provisória”, como diz ele, em São Petersburgo. Planejou sua fuga no trajeto mesmo percorrido pela escolta policial que o transferia dali para um povoado remoto na Sibéria, Obdorsk, destino final de sua condenação perpétua.

A narrativa é dividida em duas partes: “A Ida” e “A volta”, sendo a primeira em estilo epistolar, em cartas cujo destinatário, anônimo no texto, era sua segunda mulher, Natália Sedova, revolucionária russa que Trótski conhecera em Paris, por ocasião de sua primeira fuga, e com quem teve dois filhos. Na segunda parte, o tom muda para diário de viagem.

Nota-se o observador atento neste Trótski narrador que logo afirma sua decisão de se insurgir contra a condição de condenado ao degredo

Nas cartas à mulher, o prisioneiro vai narrando as etapas da jornada pela Sibéria gelada, de temperaturas entre 25 e 30 graus negativos, parte feita por trem, parte a cavalo, parte em trenós puxados por renas.

Desde o início do texto, nota-se o observador atento neste Trótski narrador que logo afirma sua decisão de se insurgir contra a condição de condenado ao degredo. Diz ele, na primeira carta:

“Para ocultar a nossa rota, por si só impossível de ocultar (…), somos proibidos de escrever cartas durante a travessia. Tal é a ordem do coronel invisível com base no ‘protocolo’ de Petersburgo. Mas nós, já no primeiro dia da viagem, começamos a escrever, na esperança de conseguir enviá-las. E não estávamos enganados. O protocolo falhara em prever que não haveria absolutamente nenhum servo fiel, enquanto nós estávamos cercados de amigos por todos os lados”.

Esses “amigos” a que se refere são os simpatizantes da causa revolucionária que o comboio vai cruzando nas várias paradas da viagem, a exemplo desta, na localidade de Tiumén. “Na prisão de Tiumén havia muitos presos políticos (…). Eles se reuniram sob a nossa janela, saudaram-nos com canções e até hastearam uma bandeira vermelha com a inscrição ‘Viva a revolução’. (…). A cena foi bastante impressionante e, pode-se até dizer, comovente à sua maneira”.

Este Trótski comovido, que vai revelando tão curioso pano de fundo da Revolução Socialista que irromperia dez anos depois e resultaria na União Soviética, é o mesmo que observa e descreve com interesse e poesia a paisagem siberiana, a flora, a fauna, os costumes e a pobreza dos povos nômades ou fixos daquela região inóspita.

A narrativa se desenvolve aprofundando uma atmosfera de suspense, especialmente na segunda parte, “A Volta”, em que o fugitivo expõe toda a sua aflição e medo de ser descoberto e perseguido a tempo por seus algozes.

Conduzido por um cocheiro local muitas vezes alcoolizado – o consumo de bebida alcóolica em excesso é praxe entre diversos povos siberianos descritos no texto –, que comanda os trenós puxados por renas, Trótski empreende sua fuga seguindo por rotas paralelas ao caminho principal por onde tinha vindo, abrigando-se em hospedagens precárias e enfrentando o frio extremo do inverno severo dos meses de janeiro e fevereiro, durante os quais a viagem ocorre.

Esta edição da editora Ubu foi traduzida por Letícia Mei do texto original em russo, publicado ainda em 1907 por iniciativa do próprio Trótski, e é rico em notas explicativas sobre a biografia do autor, a história política do país e a saborosa língua russa. Traz um pequeno glossário de termos e um mapa do itinerário da viagem de ida e de volta.

A edição inclui ainda nota do editor Horacio Tarcus, da publicação argentina que saiu em 2022 pela editora Siglo XXI – “La fuga de Siberia en un trineo de renos” –, bem como a cereja do bolo dessa versão em espanhol: a primorosa e apaixonada apresentação do escritor cubano Leonardo Padura, ao texto de Trótski.

A publicação deste diário de fuga do revolucionário marxista, nos dias atuais, surpreende Padura, que se pergunta: “Que curiosidade histórica, que reivindicação do presente poderiam ter provocado (…) interesse renovado e intenso pela figura de Trótski quase um século depois da sua morte?”.

Mas é o próprio Padura (autor de “O Homem que Amava os Cachorros”, romance de 2009 em que os protagonistas são Trotski e o homem que o assassinou a mando de Stálin) quem tão bem responde: na disputa histórica, diz ele, “ao contrário de seus assassinos, ele [Trótski] saiu como um símbolo de resistência, coerência e, inclusive, para seus seguidores, como a encarnação de uma realização possível da utopia”.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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