Manifesto Antimaternalista
Livro da psicanalista Vera Iaconelli aponta o mito do instinto materno e contesta a visão restritiva da maternidade em meio a uma realidade muito mais ampla
Das homenagens dirigidas a mulheres às odes para a maternidade, é comum que, dentre muitas mensagens inspiradoras, mães sejam representadas como principais responsáveis pelo sucesso ou fracasso das próximas gerações. E é contra essa noção já enraizada em nossa cultura, sempre craque em reduzir a mulher à figura de mãe, que se opõe a psicanalista Vera Iaconelli neste seu “Manifesto Antimaternalista” (Zahar, 2023). Especialista nos temas da parentalidade, ela traça uma denúncia contundente de como funciona e o que representa a armadilha ideológica dos conceitos equivocados que teimamos em manter sobre a maternidade.
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Partindo da história da própria mãe, que levou décadas para assumir de forma natural que tinha sido adotada, a psicanalista cria uma obra que não só explora os vários tipos de maternidade possíveis como também mostra os sofrimentos causados pela redução do termo a uma vivência familiar restrita e heteronormativa. Mais do que isso, aponta os absurdos nascidos da ideia sobre um “instinto materno” — uma noção que, a própria autora aponta, foi assimilada na sociedade como fato científico, coisa que passa longe de ser o que vemos no mundo real.
“Como explicar que, por séculos, as crianças morreram como moscas sob os olhares complacentes de pais e mães, sem que o dito instinto materno operasse impedindo tamanha omissão?”, questiona Iaconelli numa das passagens do livro. Botando em xeque a ideia de “mãe”, em meio à busca de pessoas trans e não binárias pelo reconhecimento de seu lugar na parentalidade e aos casais homossexuais que há tempos desafiam as restrições desse modelo, a autora recria de forma detalhada as origens históricas dessa visão e explora a fundo suas inúmeras inconsistências.
Em uma sociedade pós-escravidão e recém-industrializada, como apoiar as mulheres para que conseguissem desempenhar sua “obrigação” como mães — cuidando, amamentando, educando —, quando elas mesmas têm sua existência ameaçada pela situação de vulnerabilidade social própria do contexto? O que fazer com as viúvas sem herança, as mães solteiras, a descendência negra escorraçada para as bordas da sociedade e as famílias pobres, às quais os homens não podem ou não desejam prover sustento? Como dar conta das crianças desassistidas em função da fome, da industrialização desordenada e do abandono paterno? No acordo que regia o papel da mulher no lar e o papel do marido provedor financeiro, os homens não tinham como cumprir inteiramente sua parte como provedores, devido às péssimas condições empregatícias, obrigando as mulheres à dupla jornada, desejassem ou não. Devemos lembrar também que sempre existiram homens que se eximiram de sua responsabilidade com a prole por entenderem que esse era um assunto que cabia às mães e que a liberdade masculina não deveria ser tolhida pela paternidade.
A prole fora do casamento era considerada “ilegítima” e extremamente condenada, deixando as mães solteiras como párias, uma vez que eram tidas como únicas responsáveis pela gravidez. As mulheres negras, por sua vez, viviam uma maternidade totalmente desprestigiada, por serem associadas a hipersexualização e promiscuidade. Eram vistas como responsáveis pela reprodução de parte da população considerada indesejável, muito frequentemente se incumbindo sozinhas da prole. A ideia de que a pobreza era uma falta moral, e não fruto de condições socio-históricas, era hegemônica. Cabia aos “bem-nascidos”, por meio de atos de caridade, ofertar aos pobres benesses, o que alçava os primeiros ao lugar de bons cristãos piedosos. Ou seja, uma elite que não renunciava ao lugar de privilégios era transformada em benfeitora dos desprivilegiados a partir de obras assistenciais de cunho caridoso.
Lembremos que na esfera dos cuidados e da economia reprodutiva os homens tinham pouco a contribuir desde a divisão sexual do trabalho moderna. No início do século XX, o comportamento feminino ainda era fortemente inspirado no modelo de mulher apregoado por Rousseau. As mulheres, identificadas com o ideal da mãe instintiva e natural, lutavam como podiam para dar conta da prole e de si mesmas, uma vez que quase não havia contestação dessa meta. O pungente relato de Carolina Maria de Jesus em Quarto de despejo: Diário de uma favelada, embora se passe algumas décadas depois, é extremamente elucidativo da situação a que estavam — e ainda estão — submetidas mulheres negras, pobres, sozinhas e marginalizadas com seus filhos. Trata-se de uma autora negra, moradora da favela paulistana do Canindé, mãe solteira de três filhos, catadora de papel, que só cursou até o que então se chamava segundo ano primário e que, mesmo diante desse cenário desolador, se tornou internacionalmente conhecida pela produção literária (sem contudo ter desfrutado desse prestígio, e morrido pobre). Os diários nos quais registrou seu cotidiano de sobrevivente e preciosas reflexões sobre a vida às margens da sociedade foram imortalizados num best-seller traduzido em catorze idiomas.
As mulheres negras viviam uma maternidade totalmente desprestigiada, por serem associadas a hipersexualização e promiscuidade
Com a industrialização e o trabalho feminino e infantil em fábricas, comércios e serviços, a deterioração das condições de cuidado com as crianças foi se tornando cada vez mais insustentável. Em função dessa nova configuração, programas de bem-estar social ainda incipientes começaram a ser desenhados nos Estados Unidos e em alguns países da Europa entre os anos 1890 e 1920. No entanto, foi necessário aguardar a crise econômica de 1929 para se obter uma resposta governamental à altura, como o New Deal nos Estados Unidos e políticas de bem-estar social na Europa.
Em A polícia das famílias, o historiador Jacques Donzelot descreve como, no contexto europeu do século XIX, a filantropia avançou em substituição ao modelo baseado na caridade, sendo usada politicamente para dirimir as fragilidades de um Estado que ainda engatinhava nos investimentos em bem-estar social — e até hoje vemos como empresas podem fomentar grandes projetos filantrópicos que levam seu nome ao mesmo tempo que contribuem, através de práticas capitalistas agressivas, para a perpetuação das desigualdades sociais. Enquanto a caridade se baseia num modelo moral, de cunho religioso e privado, a filantropia tem caráter racionalista e público. Caridade e filantropia eram entendidas unicamente como boas ações de cidadãos e empresários — e não como arremedo da falta de direitos do trabalhador ou compensação por más condições estruturais da vida na ordem capitalista. Por exemplo, tivemos que esperar a Constituição de 1988 para que se instituísse o direito universal à saúde, na figura do Sistema Único de Saúde (SUS), serviço que até então estava nas mãos das Santas Casas de Misericórdia e das ordens religiosas e dependia da boa vontade de profissionais de saúde voluntários.
O cuidado com mulheres e crianças, sua proteção e instrução, era pautado na divisão de classe e raça. Como já vimos, buscava-se ajudar e qualificar as mulheres brancas, responsáveis pela geração de filhos da pátria, enquanto se fiscalizavam e desautorizavam as mulheres pretas e pobres no papel de mães. Aqui deparamos com um paradoxo que seguirá nos acompanhando por todo este livro: as iniciativas sociais baseadas no maternalismo têm valor histórico inestimável pelo que foram capazes de produzir na realidade de milhões de pessoas ao redor do mundo. Também foram responsáveis, como veremos, por desdobramentos políticos e sociais que vieram a transformar a história das sociedades ocidentais, reaproximando as mulheres do espaço público. Ainda assim, a ideologia na qual se fundamentavam, elitista e moralista, reproduzia estereótipos de gênero, de raça e de classe que perpetuavam a desigualdade que diziam querer erradicar. Ao discriminar as formas de ajuda oferecidas, o maternalismo carregava em seu bojo um viés eugenista a partir do qual promovia as maternidades desejáveis em detrimento das consideradas perniciosas. O discurso maternalista seguia pari passu as ideologias que determinam quem deve e quem não deve reproduzir o tecido social. Lembrando que se compartilhava a ideia de que “pobreza era uma fatalidade e que cabia aos bons cristãos minorar os infortúnios dos pobres e desamparados” e se entendia que a reprodução da pobreza se dava pela reprodução dos pobres, e não por fatores socioeconômicos.
Buscava-se ajudar e qualificar as mulheres brancas, responsáveis pela geração de filhos da pátria, enquanto se fiscalizavam e desautorizavam as mulheres pretas e pobres no papel de mães
Pensemos, por exemplo, no caso de Margaret Sanger. Considerada a “mãe do controle de natalidade”, ela lutou pelo direito à contracepção e abriu a primeira clínica com esse objetivo em 1916, nos Estados Unidos, sendo presa na ocasião. Embora afirmasse que “nenhuma mulher pode se considerar livre se não tiver controle sobre seu próprio corpo”, a enfermeira e ativista tornou-se parceira e recebeu recursos da Sociedade Eugênica, que pregava que o controle de natalidade deveria ser oferecido às mulheres negras e pobres, mas não às mulheres brancas de classe média. A biografia de Sanger é maculada por essa associação, mas há pesquisadores que afirmam que ela sempre ofereceu assistência a todas as mulheres igualmente, contrariando o ideário eugenista. A clínica que instalou no Harlem a pedido da Urban League de Nova York, com corpo médico, de enfermagem e conselho majoritariamente compostos de pessoas negras, foi elogiada por militantes antirracistas como W. E. B. du Bois e Martin Luther King Jr. Mais do que dar um veredicto final sobre a reputação de Sanger, cuja vida tem passagens claramente racistas, é importante reconhecer que o maternalismo se presta perfeitamente aos discursos que decidem que tipo de apoio e de controle cada mulher receberá para viver sua maternidade, a depender de sua raça ou classe social. Os efeitos das contribuições de Sanger sobre os direitos reprodutivos de mulheres negras e pobres são considerados incontestes até hoje. Ela abriu caminho para o projeto que levaria à produção da pílula anticoncepcional.
Políticas públicas que visam à proteção da mulher “para o bem da família e das crianças” correm o risco de transformar o machismo em política de Estado. A cientista política Gwendolyn Mink chega a afirmar que “as raízes da desigualdade feminina no Estado de bem-estar social podem ser encontradas na política social maternalista”. Devemos lembrar, no entanto, as condições das sociedades recém-industrializadas, período no qual o maternalismo surgiu, e a visibilidade que ele deu ao sofrimento das mulheres comuns.
O maternalismo chegou ao Brasil quando a escravidão havia sido recém-abolida e as famílias de ex-escravizados buscavam formas de sobreviver à falta de projeto de indenização pelo Estado, da qual decorria a impossibilidade de inserção social dessa população. As mulheres negras urbanas já tinham uma participação econômica significativa como lavadeiras, cozinheiras, faxineiras e no comércio ambulante, um tanto diferente da mulher branca de elite que vivia uma experiência de maior submissão ao espaço doméstico e ao marido. Isso não equivale a dizer que as mulheres negras não sofriam violências dentro da família, mas que, por força da busca de serviço doméstico remunerado, elas foram capazes de amealhar fundos, que proviam sustento e mesmo, ainda durante a escravidão, permitiram por vezes a compra de alforrias, o que lhes rendia uma circulação diferente das suas congêneres. A mulher negra empreendia no espaço público, onde circulava mais, ainda que sob vigilância, críticas e violências constantes. Os homens negros alforriados não encontravam a mesma condição das companheiras para se inserir no mercado de trabalho informal, fato que se observa até hoje na periferia dos grandes centros urbanos.
Políticas públicas que visam à proteção da mulher “para o bem da família e das crianças” correm o risco de transformar o machismo em política de Estado
Para ocupação dos novos postos de trabalho que surgiam nos campos com o fim da escravidão e com a industrialização, o governo adotou políticas de incentivo à vinda de estrangeiros europeus. Um verdadeiro sistema de cotas para pessoas brancas e europeias foi criado para facilitar e incentivar o assentamento de famílias no campo e a ocupação das vagas nas indústrias. A expectativa era de que esse contingente de europeus ajudasse a “embranquecer” o povo brasileiro e mantivesse os negros afastados dos postos mais qualificados. O ideal “patriótico” incluía a formação de um povo de descendência branca, com filhos cujos traços fisionômicos pudessem favorecer a aceitação do Brasil no mundo e distanciar o país de seu passado escravocrata. A ideia de conter a reprodução da comunidade negra em prol da branca estava, portanto, embutida nas ações do Estado e da burguesia branca.
- Manifesto Antimaternalista
- Vera Iaconelli
- Zahar
- 256 páginas
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