Na estrada — Gama Revista
COLUNA

Maria Homem

Na estrada

Estar em outro lugar, quase sempre com o desejo de poder viver outra coisa. Ser outra coisa

21 de Julho de 2023

On the road. Pé na estrada. Sair por aí, talvez sem lenço nem documento. Somente seguindo. Keep walking. Caminhando, numa moto, num carro, num motorhome. De navio, avião, submarino, quem sabe uma aeronave (hoje em dia dá para alugar alguns minutos e logo mais barateia). Qualquer que seja o modal, a ideia é percorrer um caminho cheio de aventuras. Esse é o sonho, oculto ou confesso, de todos nós; um sonho muito antigo. Alguns fazem de sua vida esse desenho. Outros, a maioria de nós, partem de tempos em tempos, nos intervalos.

Com a modernidade, inventamos uma outra versão desse ‘topos’. A estrada não precisa necessariamente ser real, concreta e animada, para fora, mas ser uma via – sempre sacra – para dentro. Um caminho de paz e quietude, do peregrino em busca de algo interior. De si mesmo, o self ou a sombra ou alguma decantação alquímica.

Ou, outra variante, também podemos embarcar na busca de não buscar nada. Alcançar uma espécie de ataraxia do desejo. Afinal, o desejo nos tortura e faz sofrer. Quero me livrar do desejo mundano, aprender a dominar o infinito circuito desejante, que não cessa. E alcançar o mítico nirvana.

É muito antigo também o impulso de narrar tudo isso. Nossa espécie simbólica criou as mais diversas sagas dos mais variados tipos de heróis. Gilgamesh é a primeira grande narrativa de uma série praticamente infinita de acontecimentos, peripécias, maravilhamentos. O conjunto de livros chamado justamente Bíblia é também um vasto compilado de aventuras e reflexões. Ulisses é outra grande epopeia. Narra as encrencas e estratégias de um herói que saiu em busca de algo que nem ele soubesse muito bem o que. Como talvez cada um de nós ainda hoje.

Há uns cem anos começamos a narrar esse ‘cair na estrada’ não só pelas palavras, mas também pelas imagens, e assim inventou-se um tipo singular de filme, o road movie. Hoje em dia podemos ter aventuras menos miraculosas e agitadas que as de Ulisses, mas igualmente densas, como as de “Paris, Texas”. E quando o foco narrativo é mais complexo, e conseguimos fazer um zoom out, a gente consegue vislumbrar uma época e uma visão de mundo, com seu espaço-tempo e seu campo de forças, aquelas que movem os heróis e as subjetividades: sociais, econômicas, ideológicas, eletromagnéticas. Qualquer grande obra faz esse mergulho, de Wim Wenders a Machado de Assis.

Por que falo disso hoje? Porque estamos num mês de férias em que todos, de alguma forma, buscamos a estrada. Estamos envoltos em alguma viagem, algum projeto que envolva um desejo de transformação. E esse o segredo da estrada: o deslocamento. Sair de um locus e entrar em outro. Estar em outro lugar, quase sempre com o desejo de poder viver outra coisa. Ser outra coisa. Outra pessoa, quem sabe. Mesmo que por uns dias, mesmo que rapidinho, naquele instante que me dá a ilusão de que não estou preso no meu ser. Naquilo que sou e naquilo que meu cotidiano me obriga a ser. Se me sinto aprisionado, menor, medíocre, ao menos existem as férias. Existe o trânsito. A esperança de estar mais além.

A gente se joga sempre na estrada, como se ela fosse a esperança de construir uma nova perspectiva, uma linha de fuga. Pode ser em micro-momentos, como o atual sextou. Olha aí a operação-estrada semanal que inventamos. As férias demarcam a operação-estrada semestral. Para alguns é anual e coincide com os únicos dias concedidos, naquela quebra natal-reveillon em que tudo para. Tudo para para que a gente possa cair na estrada (e congestionar e encarecer tudo).

A gente se joga na estrada como se ela fosse a esperança de construir uma nova perspectiva

 

E aqui vem a pergunta inevitável: para que tanto movimento? Estamos de fato nos des-locando? Ou é um infinito e quase inútil ir-e-vir? É aquela história, girando em círculos, patinando, dando murro em ponta de faca, esperneando na areia movediça. A língua, pelo menos a nossa, é rica em nos dar imagens de muito movimento que redunda em permanecer no mesmo lugar.

Em física, a fórmula do trabalho é o produto da força pelo deslocamento. Ou seja, o trabalho é o tanto de força que precisamos fazer para algo se deslocar. Em psicologia, às vezes a gente faz uma força danada para que nada se desloque. Aí é curioso. Precisaríamos inventar uma forma de matematizar isso. Muita força e muito trabalho para manter o mínimo deslocamento. Talvez seja a fórmula da neurose, essa estratégia conservadora por excelência, em que me apego à formação de compromisso entre os vetores conflitantes do sintoma. Aquele “chove e não molha” que é uma expressão sensacional, só não melhor que o icônico “não f* nem sai de cima”.

Às vezes, aliás muitas vezes, a gente nada nada nada para bater a mão na borda da piscina e voltar pro mesmo ponto de partida. Ou como diria a personagem no final de “O Leopardo”: mudar tudo para permanecer tudo igual. Conseguiríamos algo além disso?

Voltando ao início. No fundo, o que está em jogo é a transformação de um herói. Afinal, para que colocar o pé e a alma na estrada se não para chegar diferente de quando éramos na largada? Estamos sempre diante do enigma do que pode mudar em nós.

Bom final de férias. Que a estrada chegue em novas paragens, dentro e fora.

Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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