Marcello Dantas
A cultura da cura
Conseguiremos aceitar novas possibilidades de tratamento, com elementos que nos conectem a uma dimensão espiritual, ou vamos optar por mais remédio de farmácia?
O renascimento da pesquisa dos psicodélicos reata um fio ancestral de conexão entre a nossa consciência primária e os estados alterados da manifestação da mente. Seu uso aconteceu durante toda a história da humanidade, com diferentes substâncias ativas, presentes em diversas liturgias e rituais. Por milênios, culturas ao redor do planeta desenvolveram portais para acessar outras dimensões, por meio de rituais que envolviam alimentação, músicas, danças, meditação e coletividade.
Mas as pesquisas científicas sobre essas substâncias foram interrompidas de forma abrupta no final dos anos 1960, com a proibição instaurada pelo então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, permanecendo em hiato por décadas.
Durante esse período, vimos as doenças da mente humana proliferarem de forma pandêmica. Diagnósticos cada vez mais presentes de casos como depressão, pânico, estresse pós-traumático, ansiedade, entre outros, tornaram-se nomes comuns em nosso cotidiano.
Eis que vivemos na cultura ocidental um desejo de reconexão com ritos de autoconhecimento e de contato com essas camadas mais profundas da nossa aventura interior. O contexto é importantíssimo para que se chegue a algum destino e que se faça uma viagem iluminadora.
Há uma crença que rituais envolvendo psicodélicos existiam somente em culturas primitivas, o que se trata de um grande equivoco. No coração da cultura grega, que funda a civilização ocidental, estão os rituais eleusinos. Entre seus participantes estavam pilares fundamentais da filosofia que influência o pensamento até hoje, como Sócrates, Platão, Aristóteles, Sófocles e Cícero. Nesses ritos que duravam dias, tomava-se uma bebida chamada Kykeon, usada por iniciados para experimentar o mistério da morte e do renascimento, em um ritual que veio a ser conhecido como Os Mistérios de Elêusis.
Essa mistura, no entanto, diferia significativamente da bebida comum por possuir propriedades psicoativas, provavelmente causadas pela introdução do fungo ergot na cevada colhida em torno de Elêusis. Isso permitia aos iniciados alcançar uma compreensão mais completa de seu propósito na vida, e abandonar o medo da morte, como atestam os testemunhos de escritores antigos que participaram dos Mistérios. Recentemente, foi encontrada em uma escavação arqueológica uma taça que continha traços de ergot, a mesma substância natural que Albert Hoffman procurava sintetizar quando acabou por criar o LSD, em 1938.
Existe um grande molho de chaves para acessar a consciência, trancafiada em múltiplos cofres mentais
O maior desafio, porém, é como adentrar este mundo interior desprovido da bagagem ritualística necessária para enfrentar a destemperança de um território nunca visitado em si mesmo. O “Guia do Explorador Psicodélico – Jornadas Seguras, Terapêuticas e Sagradas” (Degustar, 2023), de James Fadiman, é sobre isso. Como se construir um rito contemporâneo associado ao poder de uma substância disruptiva sobre a nossa compreensão da consciência? Este livro relata experiências ao mesmo tempo que indica caminhos para um processo que só pode acontecer organicamente por meio da prática e do uso regular de psicodélicos.
Os pesquisadores, até o momento, não sabem exatamente como ou por que os psicodélicos funcionam. Eles podem “reiniciar” o cérebro, alterando os níveis de neurotransmissores, induzindo uma nova perspectiva de vida e fazendo com que tenhamos uma experiência mística, ou nos ensinando uma nova maneira de pensar. Algumas pesquisas também sugerem que essas substâncias aumentam a sugestionabilidade, tornando o indivíduo mais aberto às ideias discutidas, por exemplo, em terapia.
Além disso, podem ser de grande valia quando se encara uma doença terminal. Receber um diagnóstico grave ou fatal pode ser assustador, especialmente se a pessoa sente ansiedade sobre a própria morte ou o que pode acontecer depois. Muitos estudos sugerem que a terapia psicodélica pode aliviar o medo existencial, bem como a depressão, que diagnósticos como esse acompanham.
O fato é que essas substâncias existem como forma de cura na humanidade — desde o LSD, componente primo do ergot, à psilocibina presente nos cogumelos alucinógenos, ao sassafrás (origem natural do MDMA) ao peiote (origem natural da mescalina), e da ayahuasca até a respiração alotrópica (que produz resultados similares sem o uso de nenhuma substancia externa). Existe um grande molho de chaves para acessar a consciência, trancafiada em múltiplos cofres mentais. E já se sabe que nos próximos anos terão de ser abertos por meio de alguma terapia indicada pela própria medicina.
A pergunta que ainda permanece é se vamos, de fato, criar uma cultura ritualizada, berçada na vida contemporânea, mas com elementos que conectem a uma dimensão espiritual e amortecimentos emocionais. Ou será que vamos tratar essas chaves como mais um remédio de farmácia, nos apropriando colonialmente de uma sabedoria ancestral e consumindo-a como Coca-Cola?
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
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